Dança Vazia




Bom tarde!
Segue mais um belo conto para vocês, quem já leu pode voltar a ler e relembrar os bons tempos do xana in box.


A DANÇA VAZIA




Capítulo 1: O amor de uma vida
(por Hanna-K enviar emailvisite sua homepage, adicionado em 20 de Agosto de 2006)

CAPÍTULO 1
por hanna-k , adicionado em 13 de Dezembro de 2004)


O problema é esperar. Você sabe que um dia alguém muito especial irá pintar na sua vida, preenchendo de repente todas as lacunas que foram deixadas por outros relacionamentos – uns fugazes e outros, nem tanto; uns encontros de alma e outros, festim de corpos. Para Amanda, parecia ser uma coisa certa. Um dia, quando menos se esperasse, toparia com o amor de sua vida. No primeiro momento, não seria perceptível, então, num segundo, cruzando os olhos, bateria aquela faísca que tornaria todo o resto possível. Um riso no canto dos lábios; um leve tremer nas mãos, o coração disparado e a pele, transpirando um súbito desejo. Então, todo o resto.
E ela esperava. Não dias, meses, mas anos. Não tinha ficado sozinha. Pelo contrário. Os pequenos e fugazes amores se sucediam. Mas esperava aquele sentimento capaz de fazê-la sair de órbita. Em vão havia esperado. Aos 25 anos, ainda tinha sonhos românticos, esboçava as possibilidades, fazia planos.
Mas, tudo bem, havia esperado por esse amor sem deixar de experimentar as outras possibilidades da vida. Quando se começa um romance, não se sabe se será um clássico de Sidney Sheldon. Luxúria, traição, barracos sem fim. Quem imagina isso ao primeiro beijo, na primeira noite de amor?
Quando começou a esperar? Não fazia idéia, mas, desde seus doze anos, quando toda mulher já imagina como será o seu príncipe encantado, em seus sonhos não figuravam rapazes. Sonhava, sim, não com um belo guapo montado a cavalo, como nos contos de fada, mas em uma doce donzela que, quem sabe, deixando de lado a sua bela montaria, poderia seguir a pé, ao seu lado, em qualquer direção.
Ah, sim, esqueci de mencionar...há muito tempo ela deixou de namorar rapazes. Precisamente, desde os 16, quando experimentou os lábios de sua melhor amiga. E nunca mais parou de beijar outras bocas macias como a sua.
Amanda não encarava sua condição como um problema. Como diria Jean Paul Sartre: inferno são os outros. O ruim era mesmo querer namorar amigas...e, afinal, perceber que a atração não era recíproca. E ai, amargar a dor. Perdeu a conta de vezes em que se apaixonou pela pessoa errada. Estava cansada de prosseguir em sua busca, de procurar aquela que, surpreendentemente, cessaria com todas as interrogações.
Quantas vezes não saiu às ruas com aquela expectativa de ser “o grande dia”. E o olhar se perdia em sua caçada sem fim. A garota do supermercado, entretida em olhar rótulos de enlatados? E a outra que levava livros debaixo do braço, em seu passo apressado? E a menina que atravessava a rua, decidida em sua rota sem tréguas? Ou aquela que na pista de dança, executava o seu balanço infernal? Quem seria?
E ficava olhando aquelas garotas – umas lindas; outras, magnéticas...e achava que, se tivesse uma chance, poderia, não importando o estilo e as suas pequenas diferenças, eleger uma e fazê-la feliz, mais feliz do que jamais poderia esperar. Era mera carência, reconhecia.
Afastava sempre os pensamentos de cansaço e derrota. Quem sabe ir à praia? Fazer compras, ler um livro? Tomar um banho de água fria? Deixar a vida rolar, dia pós dia, mais uma vez. Que chato! Apelava para mais uma sessão de filmes e pipocas em casa.
Dia seguinte, trabalho. Rotina implacável do escritório de publicidade, um birô em ascensão. Era uma das redatoras. Marcos, o seu chefe, não escondia que ela era uma de suas preferidas. Não só profissionalmente, como fazia questão de deixar claro com seus convites para conversar depois do expediente. Havia tentado cantadas de todos os tipos. Um dia, quando foi mais vulgar, descartou de vez. Disse não estar a fim. “Por que não?”. Não curtia homens, foi a resposta. Pensou que isso fosse concluir a conversa, mas não. Em vez de esboçar surpresa, Marcos ficou mais ousado. Não gostar de homens não era problema, mas um mero detalhe. Que tal uma aventura a três? E, neste caso, por que não? Poderia apenas assistir...Não era possessivo. E ria da indignação provocada. Ela era tão fácil de irritar. Tão jovem, tão cheia de pudores. Ah, se ela pudesse se permitir... “Nem pensar, Marcos. Vamos mudar de assunto?”, reagia. Ele ria gostosamente. Na agência, de tanto ele pegar no seu pé, achavam que ambos mantinham um caso secreto. Isso fazia bem a ele, não desmentia.
Marcos era o tipo de homem que fazia qualquer coisa para alimentar a sua imagem de garotão. Adepto de esportes radicais, aos 32 anos, alto, bonito e atlético, não parecia ter um perfil exigido pela função. Para Amanda, o chefe dava maior importância ao seu programa muscular do que ao planejamento estratégico da empresa. Era um tanto descuidado com as contas. Tocava os negócios com displicência. Mas criava uma imagem de competência e dedicação insuperáveis, principalmente junto ao dono da empresa, um publicitário que não conseguiu superar a nostalgia pela época em que os computadores não dominavam o processo de produção. Seguro que as coisas iam bem, o publicitário decidiu curtir férias cada vez mais longas. Desta vez, foi a um daqueles retiros espirituais para retomar a agência repleto de novas idéias. Essa era a promessa, mas o tempo passava e ele não queria voltar. Estava cansado daquilo tudo. Não precisava da agência para viver folgadamente. Se ele soubesse das contas que Marcos perdeu por pura inabilidade, ficaria furioso, e ai, sim, com vontade de voltar aos velhos tempos. Marcos, entretanto, transformava as perdas em dados mercadológicos de menor importância. Ele realmente era muito bom em lidar com situações críticas, sair de enrascadas por um triz. E adorava se gabar disso.
O fato é que, depois de meses sendo inconveniente, as velhas cantadas pareciam ter parado. Ele havia arranjado uma namorada. Não uma namorada qualquer, das que se arranja para desfilar em festas, mas “a namorada”. Amanda ainda não tinha visto Gabriele pessoalmente quando os comentários a respeito dela se tornaram cada vez mais freqüentes na agência. Comentários do tipo: ela era linda, inteligente, cheia da grana, bla-bla-bla. Amanda ficava rindo daquela história. Não considerava Marcos competente para arranjar alguém diferente das louras de farmácia que ele adorava circular. Mas um dia, percebeu que estava enganada. Não só a moça não era loura como nem de perto parecia com os tipos afetados que o chefe levava para a agência. Viu os dois juntos pela primeira vez em uma foto no jornal. Um evento qualquer. Altos elogios do colunista à moça. Depois, outra foto foi parar sobre um porta-retratos na mesa do chefe. Isso, sim, era algo que merecia nota. Marcos nunca havia dado tanta importância a nenhuma mulher. Sentia-se orgulhoso, por ser um caçador incansável e, agora, estava exibindo Gabriele como uma caça que merecia figurar como o seu mais importante troféu. Claro, o fato de ela ser de família importante, fazia parte do charme da conquista. E o fato de ela ser linda, articulada e profissionalmente em ascensão, também. Particularmente, depois do que ouviu falar da moça, Amanda achava que ela demais para ele, um cafajeste assumido que adorava bancar o garanhão nos bares da periferia. Se ela soubesse o que ele aprontava todos os dias, no intervalo do almoço...As escapadas sem disfarce faziam parte do seu rol de histórias para contar no dia seguinte. Claro, histórias de alcova para a ala masculina da equipe.
Apesar de estar sempre virando notícias nas colunas de jornal, depois de cinco meses de namoro, Gabriele foi poucas vezes à agência e sempre demorando muito pouco. Trabalhava em uma multinacional. Estava se preparando para assumir um cargo executivo de maior importância. E não tinha hora para parar. Às vezes, virava a noite. Para ir às festas que Marcos gostava de ir, tinha que se planejar. Não gostava de falhar e ter que se desculpar depois. Ele tinha o hábito de sair todo o final de semana, começando pelo happy-hour da quinta-feira. E já estava farto dos inumeráveis “nãos” de Gabriele para esticadas nas sextas-feiras. Invariavelmente, lá vinha ele com sua capacidade de fazer clima. “Seu trabalho é mais importante do que eu?”. As discussões eram finalizadas por ela com um certo rigor sádico. Em cinco minutos, após ouvir em silêncio as lamúrias. “Marcos, nunca lhe enganei. Neste momento, o meu trabalho é muito importante. Você sabe disso”. Uma resposta que não era nada boa de se ouvir.
Amanda sorria consigo mesma ao ver a cara de decepção de Marcos. Ele merecia. Mas quinze minutos depois, lá estava ele, acertando sair com outra pessoa. Pobre Gabriele. Não sabia onde estava se metendo. Ela parecia ser gente boa, embora aquele ar refinado e altivo lhe emprestasse à aparência uma certa arrogância. O seu sorriso encantador, porém, desmanchavam as dúvidas. Ela sabia ser gentil e simpática. Até mesmo com ela, Amanda, havia trocado alguns cumprimentos e sorrisos quando visitava a agência...A moça definitivamente lhe deixava nervosa. Era bonita e elegante demais. Com ela, nunca conseguiu ficar à vontade. Era Gabriele entrando, e Amanda se escondendo atrás de um computador ou saindo da sala. Melhor assim, suspirava.
Sua paz estava acabando. Marcos estava irritado com a ausência da namorada, metida em mil projetos na empresa. E, ele, carente de atenção, voltou a redobrar seus convites para saídas e programinhas especiais no final da noite, aqueles papos cansativos. Embora reagisse ao assédio, Amanda não conseguia manter o chefe à distância. Ele adorava uma boa disputa. Achava que sairia ganhando, se insistisse muito. “Água em pedra mole...”, vivia repetindo. “Olha, eu não sei nada sobre a procedência desse ditado, mas quanto a mim, a repetição apenas é cansativa”, disse-lhe.
O seu humor havia se esgotado. Sua paciência, idem. Agora Marcos acalentava um sonho: esquentar sua relação com Gabriele. No plano dele, o nirvana seria poder juntar-se a elas duas em um encontro furtivo regado a vinho e sedução. Era demais para Amanda. Tudo bem, se fosse só Gabriele, quem não queria? Mas com ele junto, definitivamente, não. As suas amigas ficavam zoando de sua resistência. Imagina, quem rejeitaria aquela mulher? De bom grado, iriam, nem que fosse pagando. Elas riam muito disso. E dela, mais ainda. Quantos princípios, quanta auto-flagelação. “Você não existe, Amanda!”.
- Só por que acredito em sexo com amor?
- Vamos deixar de hipocrisia. Eu conheço as suas histórias. – Tânia, uma de suas amigas, estava totalmente com a razão.
É, ela já havia tido inúmeros casos sexuais. Mas eles haviam deixado apenas vazio. Depois do último encontro, resolveu dar um tempo. Estava sozinha há quase um ano...E não conseguia sair da apatia. Ninguém a interessava o suficiente. Lá estavam as mesmas caras, antigas namoradas que viraram amigas, o eterno ciclo da repetição, o interminável troca-troca. Tudo o que não precisava era de um amor não correspondido, maior pesadelo de sua adolescência. E afastava o pensamento da sua mente com energia. Energia demais até. È que as coisas já não funcionavam tão bem com relação à Gabriele.
Recentemente, esteve com ela, frente a frente. Não pôde evitar. Foi em uma festa da empresa, onde Marcos reuniu a equipe e amigos mais chegados para uma confraternização. Amanda percebeu que Gabriele, de fato, era totalmente o oposto de Marcos. Tão delicada, inteligente e articulada. Boa demais para ser verdade. Sempre com uma fala interessante, um sorriso encantador, nenhuma afetação. Se existia uma imagem negativa a seu respeito, esta foi substituída por outra bem poderosa. A atração que começou a sentir a impregnava. Perguntava-se se alguém havia percebido. Tratou de sabotar seus sentimentos, se recriminando. Mais um amor platônico, não. Intimamente queria sair dali, daquele grupo onde ela estava, mas não conseguia. Estava paralisada. Uma imensa onda de prazer a invadia.
Gabriele estava lá, entretida, brincando com seu drink de mentirinha. Estava tão atenta ao que os outros diziam, que parecia que a qualquer momento iria dar o seu veredito final. Mas, não. Era delicada, espontânea, procurava ouvir. Muitas vezes chegava a desconcertar com o seu olhar fixo. Naquele momento, a discussão estava começando a esquentar. Sobre o que eles estavam falando? Ah, das últimas campanhas publicitárias que enfatizavam o que eles consideravam o “infame modo de vida gay”. Os colegas da agência, na maioria homens, firmavam o compromisso entre si de defender o triunfo masculino contra a invasão homoerótica na publicidade. Eles sentiam-se desafiados por esse tal “mercado gay” que os obrigava a fazer campanhas publicitárias cada vez mais ousadas para oferecer a esta clientela que se apresentava cada vez mais exigente produtos gráficos criativos. O ponto da questão era como um hétero poderia criar para um gay se não conhecia o universo cultural do outro? “Será que eu vou ter que fazer a mesma experiência que Mel Gibson no filme Do que as mulheres gostam?”, gracejou Rodrigo, o solteiro da turma de redatores. Todos fizeram piadas a respeito. A conversa acabou descambando para a mais grosseira discriminação. Se dependessem deles, Oscar Wilde iria quebrar pedras de novo...Não suportava aquilo. Em dias normais, falaria com eloqüência sobre a perversa hipocrisia heterossexual. Mas, naquele momento, estava sem jeito de falar. A tal atração estava atrapalhando o seu raciocínio. Precisava se concentrar. A conversa estava ficando ofensiva até mesmo para aquela turma acostumada a gozar de tudo e de todos. Quando sentiu o sangue esquentar, falou de ímpeto (Ah, ela tinha que domar a sua impulsividade):
- Vocês sabem que não sou a favor de apologias, mas não vejo sentido na crença de que os gays devam se resignar ao gueto só para tornar a vida de homofóbicos que nem vocês mais confortável.
- Ah, meu Deus! E onde os gays deveriam estar? Você gostaria de conviver com travestis e drags queens o tempo todo? E quanto a nós, mulheres, seria confortável ia ao banheiro estando umas desse tipo lá? Você gostaria de ser assediada nas festas por uma delas?...Ah, não, eu dispenso. – A frase indignada era de Áurea, mulher de Fábio, um dos publicitários.
– Ah, não, pessoal, os gays sabem ser bem divertidos. – comentou Rodrigo numa falida tentativa de contemporizar. – Quem poderia imaginar a vida sem eles?
- Mas não são confiáveis. Você contrataria um gay para ser professor particular de seu filho? – A mulher de Fábio voltou a atacar.
Com aquela turma não tinha argumento racional que aplacasse anos de uma rica tradição de pensamento conservador.
- Sabe o que achei mais interessante na conversa de vocês hoje à noite? Todo esse nojo que faria o pensamento mais reacionário dos anos 40 ficar brilhando de novo. Vocês já pensaram em publicar essas idéias em um anedotário? Pois acho que não funcionaria. Só se fosse numa coletânea das piores tiradas do humor homofóbico. Não vi nada de engraçado nesse preconceito todo. Aliás, nem dá para se discutir esse egoísmo histórico.
- Você leva as coisas sérias demais, Amanda. Não estamos mais na universidade. A vida aqui fora é outra. Bem-vinda ao mundo real, ao mundo do politicamente incorreto. – Disse Rodrigo, sorrindo.
- Ah, não se irrita, Amanda. É uma festa. A gente só está brincando. Que mal há nisso? – Disse a mulher de Fábio, tentando amenizar.
De repente todos estavam olhando para ela. Seis contra um. Queria ser espirituosa. Mas estava com o sangue fervendo. Ah, odiava situações como essa. Após segundos de silêncio, que pareciam intermináveis, foi Gabriele quem falou.
- Não sei muito sobre o assunto, mas posso assegurar que o que se diz das minorias gays não é nem de perto um fato. – começou dizendo calmamente. – Pelo que sei, inumeráveis pessoas podem ter desejos homoeróticos ocultos, esperando a escuridão da noite, uma identidade secreta ou um quarto qualquer, para se manifestar. Pelo que consta, nem sempre quem é gay tem prontuário na mão ou crachá. Aliás, pode até ter um gay enrustido entre nós, neste momento...quem o saberia?
A observação não provocou risos e deixou o ar pesado, desconfortável.
Foi Marcos quem apareceu na hora, tentando apagar o fogo.
- hahaha. Gabriele, pega leve. Você deixou os rapazes da agência sem graça.
E, após ter mudado a conversa para assuntos triviais, tirou-a de cena. Amanda não se sentia confortável também. Estava sentindo a sua pele arder...aquilo lá foi uma insinuação ou uma observação sem malícia? Marcos já havia falado para Gabriele sobre ela e aquela foi a situação ideal para dizer que sabia?
A conversa do grupo perdeu o rumo. E ela, a sua noite de sono. Nos dias que se seguiram, calmaria. Só Marcos continuava a manter o ritmo das brincadeiras em torno da sua triangulação preferida. Achava que ele fazia aquilo só para lhe perturbar. E existia um pouco de verdade nisso. Queria pedir demissão, mas não se achava preparada para enfrentar a maratona de entregas de currículos àquela altura da vida. Havia entrado ali por merecimento. Não queria jogar três anos de sua vida no lixo. Resolveu começar a refazer contatos entre os amigos de outras agências. Quem sabe não apareceria outra oportunidade? E ia empurrando a situação com diplomacia, decidida a manter distância da história que Marcos construía minuciosamente.
Um assunto puxava o outro, o pensamento voava longe e contra a vontade, se pegava pensando em Gabriele. Imaginava, rindo sozinha, que o nome dela era um sugestão francesa bastante adequada. Talvez por causa de seus cabelos negros, cortado à altura dos ombros. Pelo corte fino do vestuário de executiva. Pela elegância com que andava. Enquanto ria consigo, Amanda não percebeu a aproximação de Marcos. O bastante para sussurrar em seu ouvido:
- Pensando na noite de hoje?
- Não... – disse, esquivando-se da proximidade.
- Tem compromisso hoje?
- Não, por que?
- Que tal um jantar em um lugar bacana, depois, uma esticada na boate da moda – sugeriu.
- Por que não desiste? Sério, isso já está cansando. Entenda de uma vez: não vou sair com você, nem hoje, nem nunca.
- Ah, mas o convite não é para sair comigo não: é com Gabriele.
- Gabriele? – ela ficou atônita. – Por que com Gabriele? Não estou entendendo...
- É que ela quer conhecer você melhor. – Fala macia, sorriso de malícia nos lábios.
- Eu...sinceramente, Marcos, isso está passando dos limites...acho que podemos manter nossas relações de maneira mais profissional. Não quero envolvimento com você e, muito menos, com sua namorada.
- Jura? Pois eu tenho a impressão que você tem uma “leve” simpatia por ela. Gabriele até já notou. Aliás, ela não ficou nem um pouco aborrecida.
- Ah, isso não. Nunca paquerei Gabriele. Não faria isso!
- Não precisa ficar ofendida. Você apenas gosta de olhar Gabriele. Afinal, quem não gosta? – Ele riu, sarcástico.
Amanda engoliu em seco. Olhou para os lados. Suspirou. Viu que estava sozinha com o chefe na sala. Para ela, o expediente havia acabado. Desligou o computador e pegou sua bolsa, disposta a sair.
- Olha, Amanda, não precisa ficar aborrecida. Gabriele quer mesmo conversar com você. Sem compromissos, sem sacanagem...Aqui está o local em que ela vai estar hoje à noite. Por que não vai lá saber o que ela quer?
- É, e por que ela mesma não fez o convite? Por que você?
- Ah, é por que eu simplesmente adoro ver você com cara vermelha. Há, há, há.
- É, isso já está passando dos limites. É melhor eu ir embora.
- Você vai? Tome o endereço. É um lugar muito fino e romântico. Aproveite.
Amanda arrancou o cartão e o amassou na mão, nervosamente, saindo dali o mais rápido que podia. A cabeça latejava. O que ela queria? E se tudo for uma armação? Será que Gabriele havia percebido o seu nervosismo e supôs que ela estava interessada. Mil questões a assaltavam naquele momento.
No caminho, foi pensando em procurar outro lugar para trabalhar...Mas na mesma hora, mudava o seu raciocínio. “Mas por que? Ele não é o dono da empresa!”.
Ficou com ódio de Gabriele. Marcos havia conseguido estragar a imagem de menina boazinha e sincera que ela alimentava. Essa Gabriele que gostava de sacanagem não tinha nada a ver com aquela que ela criou em sua mente. Amanda, contra a vontade, imaginou que talvez deixar-se seduzir por Gabriele não fosse tão ruim. Mas o pensamento instigante acabava parando em Marcos.
Se era verdade que Gabriele estava compartilhando com aquilo, ouviria poucas e boas. “Que cretina!”. Foi com o pensamento inflamado que acabou chegando ao restaurante onde Gabriele estava. Era um daqueles lugares da moda, repleto de gente moderninha e vazia. Ao entrar, Amanda, que normalmente ficaria tímida, não viu nada disso. Só queria extravasar tudo o que havia suportado aqueles meses todos, aquele deplorável assédio, descontando em Gabriele.
Estacionou de uma só vez, bateu a porta sem a habitual delicadeza e seguiu em passos duros, aborrecida. Avistou-a de longe. Passo a passo, foi em sua direção. Deu um olá seco, sentou-se sem corresponder ao sorriso amistoso (e um tanto surpreso) que a outra lhe endereçou. Fitou aqueles olhos verdes com raiva. A voz, no entanto, estava por um fio quando finalmente se arrastou por entre os dentes.
- O que pensa que está fazendo, Gabriele?
A moça parou de sorrir e cruzou as mãos sobre a mesa e a encarou com firmeza.
- Não estou entendendo...
- Não se faça de boba, Gabriele. O Marcos me contou tudo, o que vocês estão tramando. A proposta...
- Eu sinto muito, mas continuo sem entender.
- Então, o que faz aqui?
- Estou esperando o Marcos. Ele marcou comigo...Acabou de me ligar. Vai demorar um pouco...pediu que o aguardasse aqui.
- Gabriele, não suporto cinismo. Eu quero a verdade – disse agressiva.
Gabriele olhou aquela garota descontrolada, que falava baixo, e parecia que a qualquer momento ia desmoronar no choro, com uma certa curiosidade. Arqueou as sobrancelhas e cravou os seus olhos nos dela.
- Não sei do que está falando. Nem sei o seu nome. É Amanda, não é?
Amanda fez um breve aceno com a cabeça. Estava se sentindo mal.
- Pois Amanda, não estou gostando do seu tom. Se quer continuar falando comigo, primeiro mude seu comportamento. Eu nunca lhe dei essa abertura.
Amanda engoliu em seco e escondeu o rosto com as mãos. Controlou as lágrimas. E finalmente disse:
- Tudo bem, Gabriele, desculpa! Eu acho que estou fazendo o papel de idiota nessa história. Não tenho mais nada a fazer aqui. - disse, fazendo um movimento para se levantar da mesa.
Gabriele segurou delicadamente seu braço. Fez uma leve pressão, decidida a lhe impedir de ir pela força de seus argumentos.
- Fique. Você me deve uma explicação.
- Só posso lhe pedir desculpas. Fui grossa. Estou muito nervosa. Mas não estou mais suportando as pressões.
- Olha, Amanda, não sei o que ele lhe fez, mas isso é assunto de escritório. Por que não discute o que está lhe perturbando com Marcos? Ele é o seu chefe. Além disso, não é legal discutir assuntos profissionais fora do ambiente de trabalho e, ainda mais, com pessoas que não tem nada a ver com isso. Não fica bem...
- Você não está entendendo nada, Gabriele. Não tem nada a ver com trabalho...quer dizer, tem, mas não especificamente.
Gabriele ficou em silêncio, esperando que ela contasse. Não estava entendendo nada. Esperava que Marcos viesse logo para livrá-la daquela situação.
Amanda não conseguia olhar Gabriele. O nervosismo havia voltado e por outros motivos. A raiva que lhe dava segurança, não estava mais ali. Estava envergonhada da cena. E, agora, tentava fugir do olhar da moça que estava à sua frente.
Gabriele fez um sinal com a cabeça, pedindo para que continuasse.
- Na verdade, não sei como lhe contar essa história sórdida, Gabriele. Mas não é assunto de empresa. Envolve você.
- A mim?
Desta vez, Gabriele ficou realmente surpresa. Amanda quase se arrependeu de ter falado. Precisava fugir dali.
- Podemos conversar outro dia? – Propôs, rapidamente.
- De forma alguma. Você não vai deixar o assunto inacabado. – Gabriele estava decidida... Um pensamento tinha tomado de assalto a sua mente: Amanda estava tendo um caso com Marcos e estava ali, querendo expor a situação.
Pressionada, Amanda começou a contar. Não queria, mas foi o Marcos quem provocou. Agora, teria que agüentar as conseqüências. Estava ali, em pânico, levemente trêmula, tentando encontrar as palavras certas. E ela, com os olhos cravados no seu, controlando o seu próprio mal-estar. No fim, estava pálida. Silenciosa.
- Eu nunca pensei que Marcos gostasse de brincadeiras desse tipo. Estou um tanto chocada.
- Eu sinto muito.
- Não sinta. Realmente, diante do que você me disse, tenho que conversar com ele e esclarecer as coisas.
- Gabriele, eu...nem sei como me desculpar por ter te agredido, por ter acreditado no Marcos, por ter agido mal com você. Na verdade, fiquei com mais raiva ainda foi de ter pensado que você estivesse compartilhando com essa armação. Desculpe sinceramente.
Gabriele ficou em silêncio por breves instantes.
- Você está com raiva de mim?
- Você não me conhece, Amanda. – disse em tom desafiador.
- É verdade. Eu não conheço você.
A conversa tinha acabado tensa. Estava ainda nervosa, torcendo um pouco as mãos, sem saber qual perna usar para sair dali o mais rápido possível. Foi quando seus olhos ficaram marejados de lágrimas.
- Olha, eu sei como está se sentindo. Não posso ajudar muito, mas tentarei conversar com ele sobre o que aconteceu. Acho que não voltará a repetir a brincadeira.
- Tudo bem. Obrigada. Acho que no fundo, eu só queria desabafar.
Saíram juntas. Na entrada do restaurante, elas se despediram com um breve abraço. Foi apenas um abraço amistoso, sem intenção alguma. Amanda percebeu que Gabriele estava constrangida.
- Não se preocupe. Não comprometerei você brigando com o Marcos. Vou contemporizar...mas por você e só esta vez.
A questão era realmente delicada. Ela não iria se indispor com o namorado por causa de uma desconhecida. No máximo, contaria como ficou constrangida com a história.
- Obrigada, mas não estava esperando que você tomasse uma atitude drástica. Apenas lhe contei porque não agüentava mais.
- Eu sei. Não acho que seja o momento de discutir com você as banalidades de uma relação já desgastada. Simplesmente, não vejo sentido nessa brincadeira do Marcos. – Gabriele sabia, no fundo, que não se tratava apenas de uma brincadeira de mau gosto. Sentiu-se traída em seus sentimentos. Quem Marcos achava que era para negociar com suas emoções? Não havia gostado nada daquela situação. Pior, lá estava ela, frente a frente com uma moça fragilizada. E ela, igualmente. Não estava se sentindo bem. .
Amanda, que não queria aumentar a conversa, despediu-se de vez. Mas Gabriele não parecia querer lhe deixar ir, ruminando o seu olhar, mordendo levemente seus lábios, meio atordoada. Era a primeira vez que Amanda via a namorada do chefe nervosa.
- O que foi? – Perguntou preocupada.
- Acho que não estou bem.
- Ok, não vou deixar você aqui, sozinha. Podemos entrar de novo.
- Não, aqui não. O Marcos pode chegar, pode nos encontrar aqui. Não estou a fim desse encontro, definitivamente, hoje não.
- Tudo bem, então posso lhe deixar em casa.
- Eu vim dirigindo. Não posso deixar o carro aqui. Na verdade, não é um mal-estar físico. Estou meio afetada.
Mal disse isso, seus olhos ficaram marejados, projetando lágrimas em um balé suicida.
Amanda não sabia o que fazer. Fez como nos filmes. Abraçou a mocinha em apuros e tentava animá-la com um leve afagar nas costas que estavam...nuas. Sem jeito, sem a menor perícia, preocupada com os olhos dos outros, que observavam a situação, resolveu afastá-la, balbuciando um comentário desajeitado.
- É melhor a gente sair daqui...As pessoas estão olhando.
Gabriele, mesmo chorando, não pôde deixar de ralhar com ela.
- Amanda, o que você ganha dando tantas satisfações?
Amanda se retraiu toda, envergonhada.
- Desculpa. – disse Gabriele – Desculpa. Não tenho o direito de lhe criticar.
- É mesmo, você não tem esse direito. – Disse Amanda com um fio de voz.
- Eu quero continuar essa conversa, Amanda, mas não aqui. O Marcos pode vir para cá...
- Tudo bem – suspirou irritada - Onde quer ir?
- Pode ser em um bar...
- Conheço um. Pode me seguir?
Ela meneou a cabeça afirmativamente, mas se fosse para ouvi-la chorar as mágoas desse namoro frustrado, iria pedir licença e ir embora. Estava realmente chateada. Entretanto, aqueles olhos verdes...Eram magnetos poderosos. Mas não podia olhá-los sem ficar boba. A raiva havia passado e sua segurança emocional também. Agora era entre ela e a moça atraente que queria tirar o espectro negativo da noite frustrada.
No bar, Gabriele não falou de Marcos. Não era hábito seu revelar sua intimidade. Queria apenas se distrair. Jogar conversa fora enquanto acalmava-se. E, na verdade, acabou se divertindo. Os diálogos pareciam ter sido tecidos em um romance.
Amanda sentiu um prazer infinito naquela conversa, uma melodia que ainda não havia escutado. Ficou atordoada. Estava amanhecendo e não havia percebido o tempo passar. Gabriele não esboçava sinais de cansaço. Nem ela, era verdade. Mas tinha trabalho no dia seguinte. Na verdade, muito trabalho. Mas naquele momento, estava valendo a pena prolongar-se. Não sabia se aquela conversa fluida um dia se repetiria de novo...Teria que aproveitá-la agora.
- Amanda, a nossa conversa está ótima, mas devo ir...Tenho compromissos agendados amanhã cedo, quer dizer, para daqui a pouco (risos). Mas não quero me esquecer da nossa noite. Devo confessar que fiquei surpreendida com você...
- Por que?
Gabriele sorriu o seu melhor sorriso. E olhou-a nos olhos. Ela sempre fazia isso. Era o seu jeito de controlar a conversa. Mas desta vez havia uma centelha nova. Um certo carinho.
- Quando te vi pela primeira vez, você parecia um ratinho assustado...
- Ratinho!
- Não fique chateada. Mas era o seu jeito...essa sua maneira tímida, arisca, o seu modo de ficar arrumando palavras para não falar de qualquer maneira. Mas me surpreendi. Fiquei me perguntando por que você reagiu com aquela intensidade à história sobre os gays, como se fosse algo pessoal...
A pergunta ficou no ar. Amanda não queria respondê-la de qualquer forma. Mas diria o que? Que era lésbica? Que estava a fim dela? Melhor calar.
- As pessoas têm o direito de ser felizes sem que tenham alguém para lhes dizer o que fazer.
Gabriele apenas sorriu parecendo estar satisfeita com a resposta. Ou apenas cansada demais para aumentar a conversa. O sol queria nascer. O bar estava fechando. E Amanda, ali, sem saber o que dizer. Era a despedida.
- Amanda.
- Sim?
- Qualquer dia vamos sair de novo?
- É um convite mesmo?
- Claro. Um convite sincero. Vamos sair sem os namorados. Só nós duas...Vamos sacolejar na noite, botar o papo em dia, nos conhecer mais. Achei você uma pessoa legal. De verdade.
- Tudo bem. Mas só uma coisa. Não tenho namorado. E não é problema. Você tem o Marcos. Sabe como é ter um.
Gabriele se divertiu. De repente Amanda percebeu que de algumas forma elas tinham desenvolvido ao longo da noite uma sinergia...Não sei se a palavra certa é essa. Empatia? Definitivamente, não tinha palavras. De repente, assim do nada, as duas pareciam se entender, até nas meias palavras, no discurso do olhar, nos gestos das mãos. Então, parecia não haver mais segredos.
- Eu te ligo.
- Ok.
Um beijo no rosto. Um abraço apertado, que pareceu demorar um século. Gabriele se despediu. Amanda ficou ali, por alguns instantes, extasiada, no mundo da lua, até que o barulho do bar fechando a fez acordar e ir para casa. O dia estava amanhecendo e ela se descobrindo encantada por Gabriele. Início de um sonho ou de um pesadelo? Ela era a namorada do chefe. Uma encruzilhada no mínimo irônica.


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Capítulo 2: Os rumos da amizade
(por hanna-k , adicionado em 30 de Novembro de 2004)

Amanda passou o resto da madrugada em claro, lembrando-se de cada cena, de cada olhar...tentava afugentar seu mais íntimo segredo: estava mais do que encantada. A velha obsessão pelos amores impossíveis voltou com toda a sua força. Cansou-se de tentar dormir. Ligou a TV. Desligou. Abriu um livro. Efeito devastador sobre a insônia. Dormiu com ele aberto sobre o peito. O som do despertador a fez estremecer. Levantou-se pesadamente, sem ânimo. Tinha que enfrentar o dia. Mais um dia.
No trabalho, tentou se concentrar. Impossível. De longe, percebia a ansiedade do chefe. Até que, não resistindo, ele veio lhe falar.
- Então? O que aconteceu ontem à noite?
- Ontem?
- Não se faça de desentendida, Amanda – Ele estava sendo ameno, quase suplicando - Vai, conta logo...Vocês se acertaram? Ficaram amiguinhas?
Amanda lançou um olhar nada amistoso para o chefe, mas resolveu se acalmar.
- Não houve nada de excepcional ontem à noite.
- Ah, não? Bem, tentei ligar para as duas e os celulares estavam desligados...muito estranho. Também fui lá, no restaurante...e vocês não estavam lá. Mais esquisito ainda. Fui ao apartamento de Gabriele e ela não estava lá. Posso concluir que vocês duas estavam juntas?
- Por que não pergunta para ela?
- Por que quero saber de sua boca. E ai, o meu plano deu certo?
Amanda suspirou profundamente.
- Que plano?
- Bem, supus que você, uma moça de princípios inabaláveis, romântica e ingênua, levemente inclinada a relacionamentos secretos, pudesse mudar um pouco de opinião quando percebesse o que estava perdendo. De fato, pensei comigo mesmo: por que não possibilitar esse encontro? Quem sabe, e eu digo, quem sabe, conhecendo Gabriele de perto, você pudesse aceitar o que venho lhe propondo? Eu deixo você paquerar a minha namorada, mas, é claro, depois, irei participar ativamente quando a brincadeira esquentar. E é só isso que peço. É muito pelo que estou lhe dando?
Amanda levantou-se abruptamente do computador, afastando-se de Marcos, que inclinado sobre ela, sussurrava-lhe.
- Fique longe de mim. Por favor, me deixe em paz!
Sem perceber, Amanda havia gritado e todos na agência olharam para os dois. Marcos ficou sem jeito e bateu os ombros, como se ela fosse uma garota mimada.
- Amanda, aprenda a controlar-se, sim?
Ela havia batido em retirada para o banheiro, tentando conter-se. O dia arrastou-se lentamente. No final do dia, Marcos lhe procurou mais uma vez.
- Bem, você deve ter tido a sua vendeta particular. Gabriele me ligou há pouco. Disse que gostaria de conversar comigo. Você nem imagina qual é o teor da conversa, não é?
- Me deixe fora disso.
- Acontece que não lhe autorizei a contar a sua versão dos fatos...A minha namorada agora está com raiva de mim. E sabe o que vai acontecer com você por ter queimado meu filme, heim?
Amanda ficou em silêncio. Marcos se retirou deixando a ameaça no ar. Realmente, estava na hora de procurar outras alternativas. E era logo.
No dia seguinte, Marcos se aproximou sorridente, com um presentinho nas mãos.
- Isso é um pedido formal de desculpas – disse, estendendo o pacotinho para ela.
- Eu não quero – Recusou.
- Aceite. Agi mal com você. Me precipitei. Gabriele é só elogios para você. Disse que é uma moça legal, que merece respeito etc, mas tudo em tom light. Acho que ela entendeu tudo como uma brincadeira. Vamos deixar assim, ok?
- E quanto às suas “brincadeiras”?
Marcos sorriu, malicioso.
- Vou dar um tempo para você se acostumar com a idéia.
- Para mim, chega. Não vou compactuar com você.
- Ok, vamos ver se você irá resistir....
- Não seja pretensioso.
Marcos sorriu enigmático. Amanda virou as costas e voltou a trabalhar.
Os dias se passaram. Sonhava com Gabriele de olhos abertos. Ansiava por sua voz. Ficava com o coração acelerado imaginando ela entrar na agência...Ficava pesquisando sobre o trabalho dela na Internet, fuçava os jornais atrás das velhas notinhas nas colunas sociais. Estava se sentindo patética, algo que só apaixonados sabem ser.
- Telefone para você, Amanda.
Ela atendeu distraidamente.
- Alô!
- Oi, Amanda! Tudo bem?
Ela reconheceu aquela voz inconfundível. Seu coração foi a mil. Gaguejou um oi. Estava surpresa. Pensava sinceramente que ela nunca fosse lhe procurar.
- Você está bem? Sua voz está estranha.
- Ahann. Ah, é que eu estava imersa no trabalho. Tudo bem?
- Tudo. Eu estou lhe ligando para dizer duas coisas. Primeiro, eu conversei com o Marcos. Fui diplomática para não deixá-lo irritado com você. Isso poderia lhe prejudicar no trabalho. Acho que ele entendeu a mensagem. Vai deixar de brincar com você.
- Eu te agradeço. Está sendo muito gentil.
- Bem, acho que estou te devendo essa. Mas tenho um convite a fazer.
O coração de Amanda subiu à garganta. Com esforço, conseguiu falar algo.
- Convite?
- É, lembra que eu disse que poderíamos sair qualquer dia?
- Ah, sim, claro.
- Bom, tenho um espaço na minha agenda hoje. Eu sei que é muito em cima, que você pode ter planos, mas resolvi tentar. Tem um show bacana em um espaço cultural daqui a pouco. O Marcos detesta programas como este. Resolvi não chamá-lo. Pensei em você. O que acha?
Amanda estava feliz. Mal podia acreditar.
- Puxa, eu estou surpresa. Claro, claro. Não tenho programas hoje. Posso ir sim.
- Então, vamos nos encontrar lá às 21h?
- Ok, está perfeito para mim.
Gabriele desligou, deixando Amanda atônita e ao mesmo tempo feliz. Não sabia o que fazer, o que pensar, estava perdida em seus pensamentos. Gabriele queria ser sua amiga. Tinha medo de que ela pudesse ler nas suas atitudes os sentimentos que brotavam. Com um pouco mais de atenção, poderia perceber seu olhar apaixonado. Ela iria afastar-se dela quando descobrisse. E Marcos? O que ele faria se soubesse que sua namorada estava investindo naquela amizade? E se Gabriele pensasse que ambos estavam compactuando? Amanda queria fugir. No entanto, as dúvidas não fincaram raízes. Foi só pensar em Gabriele e ficou feliz.
Ao sair da agência, foi em casa tomar um demorado banho. Queria ficar perfumada e atraente. A quem ela queria enganar? Queria que Gabriele a olhasse com outros olhos...quem sabe não conseguia? Saiu de casa pouco confiante, nervosa. Estava um pouco atrasada quando chegou finalmente ao Espaço Cultural. Gabriele estava lá, como sempre, muito linda. Ela abriu um largo sorriso quando a viu de longe. Aproximou-se para cumprimentá-la.
- Pensei que não viria. – Disse-lhe, dando-lhe dois beijinhos no rosto.
- Ai, desculpa, tive que ir em casa e acabei perdendo tempo com o trajeto.
- Imagina...eu fui precipitada convidando você assim de repente. Prometo não fazer mais isso. Nas próximas vezes, telefono com antecedência – disse sorrindo.
Amanda não pôde disfarçar a sua felicidade. “Próximas vezes?”. Os seus olhos brilhavam intensamente. Estava nervosa. Mas algo em Gabriele a deixava tranqüila naquele dia: ela havia derrubado o muro de fria cordialidade que havia. Estava realmente se esforçando para ser amistosa, simpática, receptiva.
Foi ela quem escolheu o lugar para se sentarem. A casa estava lotada. Gente conhecida, amigos e até mesmo clientes se aproximavam para cumprimentar Gabriele. Ela acenava, dava beijinhos, conversava um pouco e depois sorria para Amanda, como se estivesse pedindo desculpas pela interrupção.
Não eram apenas os olhos apaixonados de Amanda que acharam Gabriele particularmente bonita naquela noite. O seu rosto estava iluminado por um sorriso amplo e por um olhar igualmente sincero. O ambiente a deixava eufórica. Falava sem parar. O fato de estar ali com ela, o seu objeto de admiração, enchia Amanda de um prazer indecifrável. Gabriele confessou, baixinho, que adorava sair para programas assim e que achava a coisa de ter que freqüentar os lugares da moda um tédio. Infelizmente Marcos não achava o mesmo.
- Gabriele, me perdoe se sou indiscreta, mas vocês são tão diferentes....
A moça fixou seus olhos em Amanda e naquele momento parecia estar estudando silenciosamente a sua resposta.
- Eu sei...Não faço o perfil de moças que ele costumava sair. Marcos é um tanto imaturo, tem gostos diferentes do meu. Mas ele me faz rir. Eu sei que é meio idiota isso, mas é a sua melhor qualidade. Vivo em um mundo particular, repleto de pressões, de cobranças. O Marcos me faz esquecer esse mundo. Ele é divertido, me faz muito bem...aliás, como você.
- Eu?
- É, você. Eu conheço muitas pessoas, Amanda. Vivo cercada delas. São, em sua maior parte, como sanguessugas, sempre querendo algo, interessadas em alguma coisa, almejando possibilidades. Você, desde o primeiro momento, me pareceu ser uma pessoa sincera, destituída da malícia que eu tanto detesto.
- Bem, fico feliz que goste de minha companhia...mas...
- Mas?
- É que eu acho você tão refinada, tão longe do meu mundo. Aliás, diferente de mim em tudo: você é mais decidida, experiente. O que você aprecia em minha companhia se diz que sou insegura, desconfiada, tímida?
Gabriele deu um sorriso acolhedor.
- Você é especial, Amanda. Não deixe que as pessoas decidam o que você é, apenas seja. A sua timidez não me incomoda nem um pouco, acho até agradável. Mas sei que você é bem mais espontânea com outras pessoas. Vi isso lá naquela festa, quando ficou brava com aquele assunto. Não me esqueço de sua eloqüência. Acho que você fica tímida comigo por causa de sua história com o Marcos. Essa proximidade te incomoda.
- È verdade. Admito que estou um pouco constrangida pelo que aconteceu. Mas quero que isso não atrapalhe a nossa amizade.
- É o que passou, passou, agora é passado. Vamos pensar no que vai acontecer de agora em diante....
- Tem razão.
O show ia começar. As luzes se apagaram. Há tempos não passava uma noite tão mágica e instigante como aquela. Gabriele se divertia, comentava, parecia estar em seu nirvana pessoal. E ela, Amanda, estava ali, bebendo-lhe as palavras, compartilhando daquele momento. Nunca tinha conhecido ninguém como ela. Gabriele parecia extrair o que havia de melhor em sua alma. E possuía qualidades que apreciava: era extremamente delicada, atenciosa e franca. E em sua companhia, embora fosse assediada o tempo todo, não lhe deixava só.
Naquela noite descobriu que não poderia fugir de seus sentimentos. Estava tão feliz e enlevada, que nem conseguia esconder suas sensações. Entretanto, estava ciente de que Gabriele queria apenas sua amizade. Mesmo sem alimentar esperanças, Amanda achava que aquela era uma troca justa.
- Só na sua cabeça isso vai dar certo, Amanda. – Rosana, a sua amiga e ex-namorada estava perplexa com aquela situação. Não fazia parte da turma que apoiava a idéia achando que um dia Gabriele iria se render de paixão e jogar-se aos seus braços. – Olha, eu sei que você está interessada, mas é porque está carente. Há quanto tempo não tem um relacionamento sério? Mais de um ano né? E ai, lá vem a maravilhosa Gabriele, a mulher de seus sonhos, entrando em sua vida, assim, sem mais nem menos? Cuidado, você pode se ferir, perder o emprego, e o que é pior, bons anos de sua vida. Qual a média de seus últimos romances platônicos?
- Ah, isso foi quando eu era adolescente!
- É, mas é o que está parecendo agora. Por que não abandona esse projeto e vai procurar um relacionamento de verdade? Tem muita gente querendo ficar com você, por que não tenta? Sabe a Sandrinha? Ela pediu seu telefone. E a Carla, gatérrima, também me pediu informações sobre você. Estou fazendo os cadastros, amiga. Agora depende de você.
Amanda olhou para Rosana com ar desanimado. Depois da última saída com Gabriele, há duas semanas, tinha falado com ela por telefone rapidamente. E nada mais. È verdade que ela lhe mandava emails delicados, mas queria ouvir a sua voz. Aquele silêncio a angustiava. Gabriele, é verdade, estava muito ocupada trabalhando em um superprojeto decisivo para sua carreira.
Amanda entendia, mas como toda mulher apaixonada, passava o dia esperando uma ligação, o emails sempre pontuais, mensagens no celular...Mas a outra lhe tinha apenas amizade, tinha que admitir.
- Talvez você tenha razão. Não posso me entregar assim, tenho que reagir.
- Ótimo. Não vamos perder tempo. Vamos nos encontrar com as meninas ainda hoje.
- Hoje?
- E tem dia melhor? Sexta-feira....tudo pode acontecer! Vai ser o máximo. Vai estar todo mundo da turma na boate. Você vai poder tirar seus grilos, conhecer gente interessante, se divertir, beijar muitooo.
Amanda riu, mas na realidade, estava indo mais para colocar sua mente em ordem. Quando estava sozinha, ficava meio desesperada, sofrendo a ausência de Gabriele como uma junkie. Ela lhe havia acostumado mal. Todos os dias, depois do segundo encontro, mandava pequenas mensagens pelo email. Eram mensagens simpáticas, curtinhas e amistosas. “Ei, amiga, adorei ter saído com você!” Amanda sabia que não podia esperar mais do que isso. Gabriele já havia confessado seus sentimentos por Marcos. Ela gostava dele. Por ela, a afeição não passaria de amizade sincera. Quem não estava sendo sincera era ela ao guardar sua paixão a sete chaves, escondendo a sua saudade, sua vontade de ligar. Tinha de ser paciente.
- Então, vamos?
- Claro...quem mais vai?
- Além de suas pretendentes?
Amanda caiu na risada. Só Rosana mesmo para lhe tirar da deprê. Estava mal mesmo, mas não queria afundar na cama e ficar ruminando a sua paixão sem futuro. Tinha que encontrar alguém e tentar se distrair, encontrar forças para esquecer Gabriele. Nem parecia que estava saindo com ela há quase um mês, escondendo os encontros de Marcos, cada vez mais desconfiado. Enquanto ele lhe dava um tempo, Amanda fazia contatos para entrevistas de emprego em outras agências. A situação estava devagar, mas um amigo estava vendo as possibilidades de outras colocações pessoalmente. Tinha confiança que sairia dali, sem olhar para trás.
No barzinho GLS Amanda foi cercada das antigas amizades. Elas reclamavam de seu afastamento. Depois de tanto tempo, o efeito produzido sobre as demais era semelhante ao que as novatas produziam. Quando percebeu, várias mulheres lhe lançavam olhares, mandavam bilhetes, pediam referências...Ela sorria. Carla e Sandrinha já haviam se aproximado e estavam na espreita, jogando papo fora, olhando insistentemente para ela.
- Uau, como você está solicitada, amiga!
- Ah, deixa disso...é que virei novidade de novo!
- Não seja modesta...você é linda, amiga. Se eu não estivesse casada, iria investir em você.
- Ih, Márcia, seria quase um incesto – Sorriu Amanda. Conhecia Márcia há anos.
- Hahaha.
- Posso me sentar. – Sandrinha estava se aproximando.
Carla não deixou por menos.
- Mas só se não monopolizar a Amanda. Né, Amanda?
As duas se enfrentaram com o olhar e logo depois, começaram a jogar charme e conversa fora. O alvo: Amanda, disputadíssima.
- Então, Amanda, qual delas? – Cochichou Rosana em seu ouvido?
- Ah, não sei, nenhuma me interessa... – Sussurrou.
- Vamos dançar, Amanda! – Carla levanta e sai levando-a pela mão.
Sem alternativas, foi. Carla era uma mulher muito sensual e envolvente. Tinha fama de ser muito direta em suas aproximações. Sem meias-palavras. A balada era lenta e pedia um conversa ao pé de ouvido.
- Então, o que a fez se afastar dos bares?
- É que resolvi dar um tempo.
- Acho que foi tempo demais perdido à toa. Mas valeu a pena esperar...Naquele época você estava casada e eu, envolvida. Agora está bom...nós duas solteiras.
- É, mas não estou em busca de aventuras agora...vim só me divertir.
- E quem falou que você não vai se divertir? Esqueceu que essa é a minha especialidade?
Carla se grudou a seu corpo e Amanda suou frio. Ela estava mexendo com sua libido. Não sabia se poderia resistir. E, realmente, não conseguiu. Mil beijos em sua boca. O resto do corpo em chamas. Entregou-se aquele desejo, ansiando que pudesse silenciar a sua verdadeira paixão. Nada disso foi possível. Depois, em seu apartamento, depois que Carla saiu, Amanda chorou de saudade. Pensou em Gabriele. Não conseguiu esquecê-la nem por um minuto, sentiu-se traindo seu amor. Amor?
Quando Carla foi embora, deixando o seu beijo mais molhado e a promessa de repetir, Amanda não lhe deu esperanças. Não queria guardar sequer algum resquício da noite que passou.
Atravessou a manhã de sábado entretida em arrumar a casa. Estava uma verdadeira bagunça. Suas amigas ligaram querendo saber o óbvio. Eufóricas. Só Amanda não tinha ficado empolgada. Carla era uma mulher muito atraente, fogosa ao extremo, mas não conseguiu aplacar nem por um minuto a sensação de saudade que sentia de Gabriele. Mas se fosse esse o remédio para esquecer a paixão recolhida, que fosse...Seria Carla, Sandrinha ou outra ainda sem nome... Por dentro sabia que tal empenho era mentira. Estava consumida de um enorme vazio. Estava louca para ligar para Gabriele e ouvir a sua voz. Rondava o telefone, ensaiava os números, mas não completava a ligação. A quem queria enganar?
A noite chegou lentamente. Estava vendo TV. O seu celular toca. É o número de Gabriele.
- Alô – disse com o coração aos pulos.
- Oi, amiga! Finalmente! Estava com saudades! Tive uma semana incrível! Nunca trabalhei tanto. Varei até a madrugada, mas consegui terminar o projeto. Ontem, eu apresentei à direção. Eles ado-ra-ram!
- Parabéns, Gabriele – Amanda vibrou de verdade. – Puxa, eu estou muito feliz por você!
- Que bom que esteja! Eu nem acredito que consegui. Estava muito nervosa, mas mostrei confiança na hora de apresentar. Até os gerentes das outras matrizes elogiaram. Acho que estou com prestígio suficiente para pleitear novos rumos na empresa. Minha família ainda não sabe...mas também não sei se eles entenderiam essas pequenas vitórias, a menos que significasse uma promoção imediata... Mas não foi para isso que liguei. Amanhã tenho planos para a gente! Que tal almoçarmos?
- Só nós duas? E o Marcos?
- O que tem o Marcos?
- Você não tem que comemorar com ele?
- Amanda...você não existe! Hahaha. Eu comemoro com ele depois. Aliás, ele está um pouco enciumado de meu trabalho nesse momento. Não tenho tido tempo para fazer os programas que ele gosta, mas não o condeno...apenas perdi o interesse de varar a noite em boates, de sair com os amigos dele. Por causa do projeto, tive que me afastar um pouco dele para me dedicar mais. Mas não vamos falar disso. Estou muito mais interessada em contar para você essa batalha monumental que foi apresentar as minhas idéias.
A euforia de Gabriele era contagiante. Amanda sorriu.
- Ok, se é assim, mal posso esperar por amanhã...
-Tá, estou vendo as opções que temos. Conheço um ótimo restaurante na zona leste...Tem um cardápio maravilhoso...
- Que tal almoçarmos na minha casa?
- Ah, não...você quer passar o domingo cozinhando? Tenha dó...assim você não vai me dar atenção. Estou muito eufórica. Preciso contar a minha aventura no reino do mundo corporativo! Vai por mim, Amanda, você vai me achar muito convencida!
- Nunca, Gabriele. Você é a mulher mais interessante que eu conheço. – Quase se arrependeu por ter dito isso. O que ela iria pensar?
- Obrigada, Amanda. Estou ficando mal acostumada...você só vive me elogiando, me fazendo sentir especial...De repente, até passo a acreditar.
- Mas acredite, é sincero...quer dizer, é de coração, você sabe.
-Sei sim, amiga. Então, o que vai ser?
- Tudo bem, vamos ao seu restaurante...
- Ok, mas depois quero conhecer a sua casa. Estou curiosa.
- Bem, é bem simples. Na verdade, simples demais. Eu mesma decorei. Tudo que consegui está aqui...é a minha vida. Se você não se importar com a ausência de luxo.
- Amanda, não estou atrás de luxo. A minha família é que curte essas coisas. Gosto mais de simplicidade. Você nem conhece o meu apartamento. Minha mãe vive reclamando que ele não tem a classe que eu mereço, quer dizer, por ser membro da sua família...eu a provoco: sempre deixo o apartamento mais bagunçado do que é quando sei que ela vai me visitar. Não quero ela se metendo com a decoração do meu espaço. Ele é meu refúgio...- Sorriu. – Ei, já comecei a falar da minha família para você. Isso é sério...Não quero aborrecê-la com meus assuntos.
- De forma alguma, não me aborrece nem um pouco. Vamos fazer um trato: você conhece a minha baguncinha e eu conheço a sua. Assim, vamos ter do que sorrir a semana inteira.
- Combinado.
Elas se despediram e Amanda ficou um longo tempo sorrindo, um sorriso largo e cheio de alegria. Amava Gabriele. Não queria mais ninguém, só Gabriele. Mas não pôde deixar de sofrer sabendo que ela pertencia a Marcos e, por mais que odiasse essa idéia, ela era a namorada dele. Estavam juntos.
E embora não soubesse nada sobre o relacionamento deles – porque Gabriele não contava - parecia que o romance prosseguia firme e forte. Marcos havia deixado de importuná-la. O clima na agência estava melhor, mas ela não se sentia bem. Estava decidida a sair. Segunda-feira iria fazer uma entrevista em uma outra agência. Tinha grandes chances. Se conseguisse, Gabriele iria saber disso em primeira mão.
Depois da ligação, a noite de sábado tinha adquirido um importante status...em poucas horas iria encontrar-se com ela. Mal conseguiu dormir. Domingo, meio sonolenta, despertou depressa. Tinha passado da hora. Os eternos atrasos. Mal teve tempo de banhar, quando a porta tocou. Se enrolou na toalha e olhou pelo olho mágico. Era Gabriele. Um arrepio na espinha, um estremecimento no corpo inteiro. Tentou se recompor antes que ela percebesse.
- Abre aí, Amanda. Sou eu.
- Gabriele!
- Hahaha, pois é, resolvi lhe fazer uma surpresa. – E foi entrando. – Então, é aqui que você mora?
- Comoo descobriu? – gaguejou.
- Tenho meus informantes – Disse misteriosa. Mas como Amanda ficou desconfiada, resolveu abrir a história – Sua boba, seu endereço está na revista que você me emprestou.
- Ah... – Suspirou.
- Sua casa é bem bacana, Amanda. Pode ir se vestir. Enquanto isso, vou dar uma olhada em seus livros....hum, você já leu tudo isso?
- Grande parte. Eu gostava de investir em livros quando estava estudando.
- É, mas aqui não tem livros só de publicidade. Ora, ora....Eu adoro esse autor! – Disse, pegando o um título de Michel Maffesoli. – Ele é tudo de bom, Amanda. Não sabia que gostava dele.
- Uhum... Eu escrevi umas resenhas sobre a obra dele. Pena que perdi a palestra que ele deu na universidade há uns dois anos...
- Eu, não. Estava lá. – Disse Gabriele, sorrindo.
- Ah, me fazendo inveja. Não vale!
As duas riram. Amanda foi se vestir. Gabriele ficou na sala, mexendo na estante, passeando pelos títulos, esbarrando em autores que também lia.
- Você tem um gosto literário parecido com o meu – Falou Gabriele.
Amanda respondeu do quarto.
- Ah, isso é porque você não viu a minha coleção do Sidney Sheldon – gracejou.
- Ah, não...você também tinha?
- Estava só brincando, Gabriele...Quer dizer: eu li, mas dei fim aos livros...Tenho um certo pudor intelectual. Imagina o que meus amigos iriam pensar de mim?
- Tudo bem, eu também confesso meus pecados...sabe aqueles livros com histórias para mulheres românticas que se vendiam em bancas?
- Ah, sei, a coleção Júlia, Sabrina e Bianca? – perguntou Amanda, sem se agüentar.
Ela também tinha lido, mas era segredo de estado.
As conversas divertidas se sucediam. As duas riram a manhã toda. Depois, foram almoçar. O tom ficou mais ameno. Estavam degustando o vinho quando Gabriele chamou seu nome em tom de confidência.
- Amanda... Sabe, eu não gosto muito de falar sobre minha vida. Mas com você é diferente. Nenhuma amiga minha me escuta como você. Quer dizer. O meu nível de frivolidade com você é mínimo...Ah, já estou ficando bêbada. Deixa eu ser mais objetiva. Eu tenho pensado muito na minha relação com o Marcos. Acho que ela já deu tudo o que tinha de dar...quer dizer, acho que deixou de ser divertida. Estava me enganando sobre isso. Não sobre a atração. Ela existiu mesmo. Acho que o usei para aplacar um pouco a minha solidão, para aliviar meu estresse, mas não vejo sentido em manter um namoro só para isso. Quero muito mais de um relacionamento, entende?
- Mas você tem certeza? Quer dizer, há três semanas atrás, você gostava dele. Pelo menos é o que você demonstrava.
- Amanda, não é verdade que deixei de gostar. O problema é esse. Eu apenas gosto dele, não sinto nada de muito profundo. Ele é maravilhoso, não deixa nada a desejar, mas não me completa, não me preenche, entende? E tenho que confessar que nos últimos dias tenho ficado meio sem paciência com ele. É como se a máscara tivesse caído. Quando acordei, o que vi foi apenas um homem imaturo, fugindo de si mesmo, brincando com a vida...Não quero esse tipo de homem para mim, pelo menos, não definitivamente.
- Ah, entendo. Mas não sei o que dizer. Nem posso...não quero opinar sobre isso. Você sabe, por questões pessoais, prefiro não falar nada.
- Ah, eu sei. Pelo menos você não será uma de minhas amigas a me dizer como sou tola deixando escapar esse “partidão”...
- Partidão? Ai, que palavra antiga, Gabriele.
- É, tem razão...Mas diga-me realmente o que acha. Esqueça que estou falando do Marcos que você conhece.
Amanda respirou fundo. Não suportava olhar para ela assim. Mas não pôde evitar.
- Acho que você merece muito mais. Você é tudo o que uma pessoa pode almejar. É doce, linda, inteligente. Tem um coração inacreditável, é generosa, simpática...quer dizer, acho que você poder conseguir preencher seu coração sem pressa. Basta esperar um pouco. Err, não acho possível você ficar sozinha por muito tempo. Quer dizer, deve ter muita gente esperando uma chance de ficar com você, não é?
Gabriele meneou a cabeça afirmativamente.
- É, é verdade. Propostas sempre pintam. No ambiente corporativo, é só o que tem. Mas não estou muito aberta a cantadas...não me interessa o nível. Os homens desaprenderam a arte da conquista. Eles querem ir pegando, sem sutilezas. Quando não, falam de sua vida financeira como se fosse um atributo sexual. É insuportável.
- Sei bem o que é isso. – Disse Amanda, se sentindo sumir. Não suportaria ver Gabriele sendo disputada.
- Se eu decidir o que fazer com o Marcos, acho que darei um tempo só, para colocar as idéias no lugar.
- É o que eu faria.
Gabriele a olhou enigmática.
- E você, por que está sozinha? Não se interessa por ninguém?
A pergunta a pegou desprevenida.
- Não, quer dizer, eu tenho alguém....aham, tive alguém. Não consegui esquecer. Estou me organizando também, dando um tempo para a minha cabeça.
- Mas também não é legal ficar muito tempo sozinha. Você não sente falta de ter alguém com quem dividir?
Amanda lhe olhou sem esconder a emoção. Depois desviou o olhar intenso.
- Eu não me sinto só...tenho amigos como você. Isso me preenche.
Gabriele concordou.
- Também não me sinto falta de ninguém quando estou com você – disse.
A sua frase teve um impacto de um soco no estômago de Amanda. O que ela queria dizer com isso? O que significava? Gabriele estava lá, momentaneamente imersa em seu mundo, brincando com seu copo, olhando-a em seus olhos, sorrindo sem malícia, como se fosse o mar acolhendo a pequena embarcação. Ela afundava naqueles olhos. Não sabia o que dizer. Estava hipnotizada e ao mesmo tempo, tremendo de emoção. Queria fugir dali.
- Eu vou.... – Levantou-se de repente. – Eu vou retocar a maquiagem.
- Tudo bem, eu vou com você.
- Ahah. Tá.
As duas foram. A tensão sexual era insuportável. Gabriele estaria percebendo? Não, estava lá, tranqüila, mexendo em seu estojo, passando o batom, olhando-se no espelho. Amanda, sem a mesma naturalidade, tentava fazer o mesmo.
- Vamos, garota...você está demorando muito. Ainda temos a tarde toda para desopilar. Você me prometeu, heim? Eu já conheci a sua casa, agora você vai conhecer o meu apartamento. Que tal?
- Ah, ok...Vamos!
A tarde prometia.



CAPÍTULO 3

No carro, Amanda ficou um pouco quieta. Gabriele havia colocado um CD. A música invadiu o ambiente acústico do carro e suscitou uma certa nostalgia. O perfume de Gabriele a deixava inquieta. Amanda fechou os olhos. Lembrou-se das velhas aulas de biologia quando seu professor falava que a atração era uma espécie de “imperativo biológico”. Paulo, o seu professor, era um eterno empolgado com aquele tema.
- Qual é o segredo da atração? – Perguntou certo dia para aquela turminha meio sonolenta, logo na primeira aula da manhã. Eles mal tinham se livrado da sonolência. A pergunta movimentou a molecada, que esperavam apenas um pretexto para iniciar a habitual barulheira, desta vez, versando sobre coisas rotundas, pontiagudas ou escondidas. Sexo, o assunto preferido.
Paulo não censurou as brincadeiras. Sorriu.
– Estão todos certos. A atração não tem uma explicação lógica. Aliás, Filósofos, sexólogos, antropólogos e biólogos, como eu - naturalmente, temos debatido bastante o assunto. Dependendo do ponto de vista, existem muitas respostas, mas nenhuma, eu asseguro, nenhuma fecha a questão.
A teoria não animava muito, mas o assunto sim. Amanda, às voltas com sua paixão platônica do momento, uma colega de turma, uma ruivinha que nem sequer sabia que ela existia, se concentrou. Paulo fez então uma afirmação inesquecível: muitas atrações provêm do cheiro. “A palavra é ferormônio, uma substância que funciona como mensageira entre seres da mesma espécie, desencadeando respostas fisiológicas e comportamentais previsíveis. Homens e Mulheres, assim como os animais, exalam quantidades sutis de ferormônio, que é detectável de forma inconsciente”, disse.
Amanda sorriu dessa lembrança fugaz. Gabriele exalava admiravelmente essa fragrância invisível. Podia senti-la atravessando seus poros, depositando-se por dentro da pele, excitando-a.
Paulo defendia que para alguns, o amor não se iniciaria quando os olhares se cruzassem, mas sim, em um ponto mais embaixo, no nariz. Ah, o perfume de Gabriele. Se ela soubesse o quanto suspirava por ela... O cheiro de sua pele, o ar que saia de sua boca, o doce hálito que se habituara a sorver...
E lá estava ela de novo sentindo os efeitos da atração. Era insuportável estar perto e não poder tocar. Olhava Gabriele pelo canto do olho. O seu perfil, a sua boca, os braços, o busto...Desviava o olhar rapidamente, com receio de que ela percebesse. De Gabriele, possuía uma foto, cuidadosamente impressa da Internet. O sorriso franco e desarmado, o rosto perfeito, os olhos verdes, a sobrancelha levemente arqueada, sem o habitual tom inquisidor. Tudo parecia lhe convidar ao beijo. Tudo o que havia conseguido era se inundar de uma saudade que não podia ser aplacada.
Amanda sabia cada detalhe daquele rosto. Incontáveis vezes ficou a olhar aquela imagem, recriminando-se por antigos diálogos, por frases que não concluiu, pelas bobagens que disse apenas para fugir do que realmente queria falar, pelas inumeráveis vezes que pareceu uma adolescente desajeitada.
Ninguém supera o ridículo de se estar apaixonada por alguém que nem sequer suspeita.
No silêncio, poderia refazer os diálogos e ser ela mesma, a Amanda eloqüente, com a resposta na ponta da língua, impulsiva. Mas, depois de Gabriele, a velha Amanda não existia mais: era apenas uma caricatura do que um dia foi.
Em vão tentava vencer o torpor que a amordaçava. Enchia-se de coragem, respirava fundo. Esboçava um gesto mais audacioso, mas sua paixão a deixava amolecida. Queria falar, tomar iniciativa, mas recolhia-se. Tinha tanta vontade de tomar a boca de Gabriele em um beijo alucinado. Mas, afastava-se desse desejo com energia. Refletia. Se fosse direta como desejava, perderia Gabriele e a sua amizade.
O medo a deixava paralisada. E se ela descobrisse?
Dela, não desejava o sexo, primitivo, incontrolável. Era pelo amor que ansiava. Daria tudo pela chance de apenas deitar a cabeça naquele colo e poder sentir o afago de suas mãos delicadas em seu cabelo. Um afago, um sorriso, nada mais. Era tão pouco...
- Você está tão calada, Amanda. Então, a almoço te deixou sonolenta? Podemos descansar um pouco lá no apartamento. – disse, olhando-a do canto do olho para não perder a atenção no trânsito. – Se preferir, te deixo em casa.
- Ah, não...- suspirou profundamente, despertando de sua letargia – É o efeito da música. Fiquei me lembrando do passado, quando estava no segundo grau em uma das minhas aulas de Biologia.
Gabriele divertiu-se.
- Você foi longe, garota... – disse, tocando levemente sua mão na perna de Amanda.
Um estremecimento profundo, a perna enrijecida, a face pálida. Amanda receou olhar Gabriele e se denunciar.
O carro seguia pelas amplas avenidas de um dos bairros nobres da Zona Leste, lugar onde Gabriele morava. Em poucos minutos, elas estavam entrando em um condomínio luxuoso. O porteiro identificou o carro e abriu o portão automático. Amanda olhou para o enorme prédio de doze andares. Evitou fazer comentários. Não queria parecer deslumbrada. Pensou consigo mesma no que Gabriele havia dito sobre seu apartamento. Um refúgio, disse...Quanta diferença do “seu” refúgio, uma pequena casa de quatro cômodos em um bairro de classe média.
A constatação das profundas diferenças sociais entre ambas repercutiu dolorosamente em Amanda. Não poderia competir com isso. Aliás, com nada. Sentiu-se mal. Quis ali mesmo desistir de tudo.
A realidade, porém, a despertou de sua letargia. Gabriele havia parado o carro e a intimava a seguir em passos largos. Gabriele andava assim, decidida.
- Amanda, fique à vontade. – disse Gabriele, pondo o braço sobre seus ombros, carinhosamente. - Mi casa, su casa.
- Tudo bem. – Sorriu sem graça.
O apartamento de Gabriele era no quinto andar. O acesso principal se dava pelo elevador. Mas Gabriele fez questão de avisar que costumava subir as escadas, para esticar as pernas. E assim foram, serpenteando.
- Os funcionários daqui nunca se acostumam com o meu hábito – Disse, sorrindo. – Eles me acham meio doida por escolher esse acesso em vez do elevador, que é o símbolo máximo do status de se morar aqui...aha. – Divertia-se.
- Eu imagino. Você adora fugir do modelo. – disse, sem tom de crítica. Admirava Gabriele. Nunca tinha conhecido alguém como ela.
- É, eu enlouqueço minha mãe, principalmente. Ela queria que eu me formasse para ser uma boa esposa e mãe de um casal de pimpolhos. Até os nomes ela já escolheu, acredita? Mas eu não nasci para este papel. Pelo menos, ainda não encontrei ninguém que me fizesse pensar seriamente no assunto.
Amanda esperou que ela abrisse a porta do apartamento e suspirou profundamente antes de entrar. O ambiente do apartamento parecia ter saído das páginas de uma revista de decoração. Revelava, nos mínimos detalhes, a faceta prática e moderna de Gabriele. Nada parecia ser supérfluo. Tudo era convidativo. Móveis caros, mas confortáveis, enxutos, sem afetação.
- Então? – Quase abriu os braços, em um extraordinário contentamento.
- Eu adorei! – Exclamou.
- Que bom que gostou porque quero que venha muitas vezes aqui e não precisa de convites, ok? Sua presença é muito bem-vinda. – Disse, jogando a bolsa sobre o sofá. – Fique à vontade como eu fiquei na sua casa. Eu vou botar um CD que é a sua cara.
Amanda nem imaginava qual. Também não perguntou. Quando o som ressoou na sala, Amanda sorriu encabulada: Gabriele tinha escolhido o último CD de Ana Carolina.
- Acertei?
- Muito bem. – Disse surpresa.
- Eu vi uns discos dela na sua casa. Imagino que você é fã de carteirinha. Não tenho tanto discos dela assim. Devo confessar que tenho uma certa paixão pelo rhythm’ in blues. Mas é difícil achar alguém para ouvir junto sem reclamações. Meus amigos acham a minha preferência tediosa. É a minha sina. Sendo assim, fique tranqüila, não vou impingir a você esse tormento...
- Posso até ouvir sem reclamar, juro! Há uns anos tive uma certa obsessão pela música “My Funny Valentine”.
Na verdade, Amanda ouvia a canção dezenas de vezes por dia, durante várias semanas... Depois, não contente, procurou versões da música na obra de vários intérpretes. “Isso foi antes de conhecer Norah Jones”, disse, sem medo de parecer seguir os modismos. Ela realmente havia adorado. “Escuto também Nina Simone, mas é só...aí se encerra meu passeio pelos ícones da black music”...
- Mas talvez você tenha escutado os meus discos preferidos de Nina Simone... (e disse qual).
- Ih, Gabriele, assim, não. Tenho que admitir que nada sei sobre as músicas que gosto de ouvir.
É, simplesmente ouvia. Já Gabriele tinha o perfil do colecionador meticuloso, dos que sabem o ano em que a obra foi gravada, produtor, o contexto histórico. Amanda se sentiu envergonhada, mas Gabriele tratou de deixá-la à vontade. Atravessou a conversa com outra e logo estavam rindo entre pilhas de CDs sentadas no tapete felpudo próximas ao sistema de som.
Gabriele realmente tinha um gosto bem específico, transitando por vários gêneros. Havia alguns que Amanda nunca tinha ouvido falar. “Isso é Jazz”, explicou Gabriele, com um enorme sorriso nos lábios. Sentia-se como uma criança entre brinquedos caros. Amanda tentava acompanhar o ritmo, a troca incessante de discos, os comentários. Começava a sentir-se pequena. A cultura de Gabriele a deixava zonza e, ao mesmo tempo, admirada. As viagens que ela havia feito, o tempo em que morou fora do Brasil, emprestou-lhe não só sofisticação, mas uma profunda humildade. Não havia afetação na forma como ela falava, apenas prazer em compartilhar. Amanda parava para escutá-la, divertindo-se com as brincadeiras de Gabriele. Não eram piadas fáceis, porque Gabriele não era nem um pouco banal. Tinha talvez uma grande influência do humor inglês, com aquelas pilhérias sofisticadas, que somente “os bons entendedores” conseguiam capturar.
Amanda continuava a olhar os CDs, espalhados sobre o tapete. Centenas de músicos e intérpretes que nunca ouvira falar. Mas no meio deles, dezenas de nacionais, desde os clássicos da MPB até os compositores mais contemporâneos. Andou pescando um ou outro CD e constatou que também se tratando de música existia entre elas um pequeno abismo...
- Então, Amanda, achou algo que a agradasse?
- É, tem muitas coisas novas para mim... Você vai me apresentar a mais alguns?
- Hoje, não. Um dia ainda vamos combinar uma sessão com o meu gosto, regada a vinho, queijo e blues. Quem sabe Jazz? Mas, hoje o dia pede algo mais animado. Quero que você me fale do que gosta de ouvir, já que você agora sabe das minhas preferências...
- Você é que parece saber tudo sobre mim, Gabriele – Protestou sorrindo – Eu é que nada sei sobre você. – Interrompeu.
- Não é verdade, Amanda. Se sou discreta com você é por pura contingência, mas não pretendo ser assim o tempo todo. Mas você - olhou para ela com aqueles olhos que sabiam ser certeiros – Você faz questão de ser um eterno mistério. Fico aqui falando sobre mim, de minha vida profissional, de meu namorado...ah, e você nada, enfiada em si mesma. Portanto, estamos em desvantagem. Nada sei nada sobre sua vida, o que você faz quando não está na agência, quais seus planos para o futuro, sobre o seu passado: quem foi importante em sua vida....- e sorriu, um sorriso delicioso, intimando que começasse a falar.
Pelo olhar, Amanda sabia que Gabriele não iria aceitar uma resposta negativa. O que a deixava tranqüila é que não se tratava de mera curiosidade. Era antes um desejo de colocar as coisas em equilíbrio. Ela, tão discreta sobre si, havia aberto parte de sua vida; agora pedia um voto de confiança. Diante da hesitação de Amanda, Gabriele colocou-se de joelhos sobre o tapete e com as mão nas cintura, fazendo graça, a intimou.
- Então, o que será?
Amanda titubeou mais uma vez. O que contaria? Sobre suas dores e decepções? Confessaria ter ouvido “My Funny Valentine” porque a música acalentou o doloroso rompimento com uma de suas namoradas? O que falaria de seu passado? Da sua família que ao descobrir sobre sua “preferência”, decidiu que seria melhor manterem distância? Que os seus melhores amigos eram gays e lésbicas? Sobre o que lembraria sorrindo? Dos amores platônicos que infernizaram a sua adolescência? Da eterna busca? Ou sobre a pior de todas as revelações: do seu amor recolhido por ela?
Não. Em vez disso falaria de como sua vida é chata e sem charme. Uma fuga perfeita. Sim, poderia deixar-se levar pela embriaguez dos sentidos e, por um impulso, contar tudo, ali, naquele momento, mas as conseqüências não a perdoariam...
- A minha vida nada tem de interessante ou excepcional. – Falou, fingindo desdém enquanto arrumava os CDs em uma pilha. A outra a olhou com descrédito. Então, Amanda continuou a enrolar-se na própria mentira. - Acredite! A minha vida é um tédio estruturado em rotinas e regras desde que me entendo por gente...– Disse.
“Deus, precisava escapar dali. Rápido”. Mas Gabriele deu um sorriso que a desarmou toda.
- Não acredito em nada que você está me falando, Amanda. Uma publicitária falando em rotinas, em regras? Puxa! Acho que pensei errado sobre a sua profissão. Imaginei que os publicitários fossem movidos a uma energia diferente para fazer tantas coisas criativas!
Gabriele estava sendo irônica, mas era uma delícia vê-la construir aquela pilhéria carinhosa. Ela estava sendo tão espontânea que nem acreditava. Pareciam amigas de infância.
- É, a minha profissão tem lá os seus mitos, como essa coisa de dose extra de criatividade. No meu caso, eu estruturo a parte conceitual das campanhas. É meio racional, acredite.
O que seria dela sem o estupor racionalista?
- Ah, estou concorrendo a um prêmio por uma de minhas peças....Não é certeza de que ganhe, mas essa possibilidade já me deixa um pouco esnobe. – disse.
- Uau. E quando ia me contar? – Gabriele vibrou, abraçando-a com intensidade. Amanda, mal continha o próprio corpo. Por um breve segundo. Sentiu como se fosse explodir.
Quando aquele arrepio na espinha iria sumir?
- Não achei que fosse lhe interessar – Disse timidamente - Quer dizer, não era tão importante e o Marcos deve lhe convidar para o evento. A agência concorre em duas categorias.
Gabriele ficou com o olhar parado por algum tempo, como se pensasse na resposta, então, finalmente quando falou, a deixou atônita e sem fala.
- Bem, posso ir com você também, se me convidar.
Amanda a olhou rapidamente. Precisava colocar a frase na seqüência correta. Ela disse: “posso ir com você também”... E a mais poderosa das promessas: “...se me convidar”. !.
Ela estava lhe dizendo nas entrelinhas que o romance entre ela e o marcos talvez não resistisse mais um mês? Havia entendido errado? Ela queria ir e em sua companhia? Por sua causa?
Intimamente vibrou de alegria. No mesmo momento, tentou controlar o sorriso que insistia em dançar nos lábios. Mas não conseguiu. Gabriele não se importou. Em vez disso, lhe passou lentamente uma taça de vinho tinto, pedindo um brinde. Á amizade, disse. O leve tilintar das taças, sorrisos.
- Está gostando desse vinho, Amanda? Eu o adquiri para esta ocasião.
- É maravilhoso! Você tem um excelente gosto.
Antes que Amanda terminasse de falar, Gabriele a tomou pela mão e a conduziu pelo apartamento, numa empolgação que Amanda desconhecia.
- Deixa eu lhe mostrar o resto do apartamento, meu refúgio!
Refúgio era apenas uma designação pouco realista que Gabriele criou para camuflar o status do lugar em que vivia. Tudo parecia ter sido minuciosamente planejado: as cores, os móveis, o sistema de iluminação. Até mesmo os objetos de arte traduziam o seu espírito inquieto e sofisticado.
- É tudo muito lindo! – Disse para ela.
- O meu cantinho preferido é a varanda. Vem ver. Tem uma vista linda da cidade. Á noite, quando tudo se ilumina, adoro assistir ao silencioso espetáculo das luzes dos carros.
- Ah, tá – sorriu Amanda. – Pensei que seu lugar favorito fosse o quarto.
- O meu quarto... ele é o meu canto especial, mas vem perdendo muito de seu prestígio. Depois da varanda, é lá que passo a maior parte do tempo quando estou em casa. Sem querer, ele foi virando uma versão do meu escritório. Odeio isso. Fico na cama com o notebook atualizando emails, vendo TV. Quando quero ler, estou lá. Até quando faço lanchinhos é na cama e ai, acabo me chateando com tudo. Queria que meu quarto voltasse a ser apenas o meu canto de dormir...
- Mas está fácil: basta não trazer o escritório para casa; deixe-o na empresa. Faça os lanchinhos na cozinha. Leia o livro na varanda ou na sala. – Brincou.
Gabriele deu uma risadinha.
- Amanda, você não existe!
Não foi o que ela disse, de fato, mas o que sentiu ao ouvi-la falar aquilo. Ela era especial para Gabriele. Emocionou-se, mas virou o rosto, fingindo estar observando a paisagem. Controlou as lágrimas. Não queria se comportar como uma boba.
- Amanda, vem ver meu quarto. – Chamou Gabriele, sem nada perceber.
As lágrimas que teimavam em aflorar foram recolhidas pela mão firme de Amanda. Respirou fundo. Tinha que passar incólume por aquele dia. Mas tremeu ao penetrar no quarto. A cama reta, sem enfeites, a luz debruçando-se sobre ela. O tom pastel das paredes, a mesinha de cabeceira repleta de livros. Imaginou-se ali, trocando juras de amor com Gabriele. Mas em vez de mergulhar no delírio que insistia em se instalar, comentou:
- Agora entendo que prefira ficar aqui a ter que sair...
Gabriele não respondeu. Em vez disso, bebeu um gole de vinho. Sentou-se à beira da cama e Amanda juntou-se a ela. Ficaram assim, envolvidas pelo súbito silêncio. Ouviam à música que invadia o quarto que já escurecia. Que horas eram? Havia perdido a noção do tempo. Havia perdido a capacidade de dizer não. Poderia, se ela pedisse, falar tudo o que se passava em seu pensamento. Falar seus segredos, contar suas histórias. Tudo convidava para uma confissão. Mas antes de abrir a boca, caiu em si. O que pensava que estava fazendo?
Como em um filme, imaginou o que aconteceria em ato contínuo: seria rejeitada como uma aberração. Cheia de nojo, Gabriele a expulsaria de sua vida. Amargaria a sua dor humilhante. Não poderia suportar isso.
Cravou as unhas na própria pele, desejando ardentemente controlar o tremor que a assaltava. Baixou os olhos e a voragem desse medo a tragou.
Foi quando Gabriele notou sua repentina tristeza.
- O que foi, Amanda? Está se sentindo bem? – perguntou preocupada, olhando em sua direção.
Ela vai perceber, ela vai perceber. Controle-se! – Pensou desesperada.
- Não se preocupe, estou bem – afastou-se, querendo chorar - Posso tomar um pouco mais de vinho?
- Claro, vou te servir mais um pouco. Vamos espantar a tristeza, as lembranças ruins. Hoje, vamos esquecer nossas rotinas, nossos “chefes”, as nossas pequenas coisas importantes. – E com um sorriso convidativo, decretou: - Vamos apenas nos divertir...
A diversão da qual Gabriele se referiu não chegava a incomodar. Os seus próprios medos, sim. Para afastar o nervosismo, Amanda tomou uma taça de vinho de um gole só. Gabriele reclamou.
- Ei, vamos devagar, Amanda. Isso embriaga. – E depois sorriu como se estivesse diante de uma menina travessa.
- Desculpe, Gabriele. Não costumo beber muito. O álcool me deixa meio sem chão.
- Tá, por isso mesmo deve beber devagar... – e com o tom mais doce, pediu – Você não precisa ficar tensa, relaxa...
- Nem sempre eu consigo relaxar com você, Gabriele.– Ela disse de repente. Ah, Amanda, por que não mantinha a boca calada? O vinho. Deveria deixar de bebê-lo, estava começando a ficar meio zonza. Mas, em vez disso, bebeu o resto da taça, ansiosa.
Gabriele ficou parada, olhando-a surpresa. Nenhum sorriso. Péssimo sinal. “Estou perdida”, pensou. É agora. Ela descobriu. Vai me expulsar de sua vida...
Gabriele tocou em sua mão, desejando tranqüilizá-la. Em vão. Como se isso, esse toque pudesse acalmá-la de alguma forma.
O que estaria pensando Gabriele?
Foi quando sentiu os seus dedos delicados virando seu rosto, que insistia em fugir em outra direção. Os verdes de Gabriele deixavam-na ofuscada. Quis desviar os olhos nervosamente, mas estava presa naquele olhar.
- Eu não entendo, Amanda...Desde que a gente se conheceu, tento deixar você à vontade comigo e invisto uma energia enorme nisso porque acho que podemos construir uma amizade valiosa. Mas você não permite que isso aconteça. Não posso crer que é ainda aquela história com o Marcos. – Gabriele era uma pessoa gentil, mas Amanda percebeu ali, naquela frase, um tom de irritação. Amanda ficou assustada. E se ela começasse a se cansar disso tudo e se afastasse? Tinha que reverter a situação, mas não sabia como...a verdade seria pior, muito pior.
- Gabriele, não sei como dizer isso, mas é que nunca conheci alguém como você. Você me deixa intimidada. – Suspirou. O seu olhar estava baixo. – Você é tudo o que eu queria ser. Não, não me entenda mal. Não é inveja, mas admiração. – E endereçou para Gabriele um marejado de lágrimas – Me desculpe.
- Não vá chorar, Amanda. – Disse Gabriele, com certa energia, mas depois amansou a voz - Sei que você me considera especial, diferente e até inatingível. Você já me disse isso mil vezes. Mas também já tentei te mostrar que o que você vê é apenas uma imagem...- E pediu em voz mansa: - Não sou isso que você vê.
Amanda quase poderia ali, cair em seus braços. Mas Gabriele continuava a falar como se estivesse diante de uma criança desamparada, que engolia as próprias lágrimas. Estava ali, querendo desmontar sua fortaleza, pedaço por pedaço.
Amanda? Amanda apenas queria fugir dali, desmanchar-se pela cama, sumir. Sentia-se distante do corpo, como se sua alma assistisse àquilo, distanciada. Estava em estupor. Não suportaria aquele olhar sobre si se não estivesse anestesiada pelas emoções.
Gabriele continuava a falar, tentando convencê-la. Não sabia realmente por que ela continuava a tentar.
– Amanda, você não entende que é impossível construir uma amizade verdadeira com barreiras como estas? Olhe para mim, está bem? – Disse, chamando sua atenção – Quando a conheci, fiquei feliz. Você é uma pessoa inteligente e sensível, desprovida dessas bobagens que os esnobes do meu meio elegem como essenciais. – Gabriele respirou profundamente. Queria ir por outro rumo – Ok, você diz que quer ser o que eu sou...Mas nada sabe realmente sobre mim, das coisas pelas quais eu sofro, do que eu tive que enfrentar para adquirir um pouco de independência e bem-estar mental, emocional. Você não sabe nada de minhas lutas diárias para manter o meu equilíbrio, das pequenas guerras que tenho que lutar. Então, se você soubesse que nada em minha vida tem o glamour e essa coisa especial que você vê, talvez, me veja como realmente sou, uma pessoa de sonha, que tem anseios muito particulares, que deseja ser amada pelo que é, em essência. É o que me dói. Não gosto de ser vista apenas como um corpo que serve-se ao banquete dos outros. Mas não tem jeito, não tem como saber isso de antemão. Posso apenas rejeitar olhares gulosos, as investidas mais grosseiras...- Fez um gesto com a mão, como se tentasse afastar de si fragmentos de lembranças ruins.
Amanda não sabia o que dizer e pensar. Permanecia naquele enovelado de emoções que a deixavam muda. Gabriele...por que ela continuava tentando? Ou estava apenas desabafando?
- Acredite-me, também queria ser como você. – Disse a uma Amanda cabisbaixa.
- É...? – Surpreendeu-se.
- É, Amanda, a sua vida tem mais coerência do que a minha. – Gabriele parecia estar se esgotando, os ombros pesaram, o olhar de repente perdido nas próprias lembranças. – Todos os dias tento viver a minha própria vida, sair de um ciclo vicioso. Acho que se estivesse falando para um terapeuta, teria sentido...Mas não quero que você fique ouvindo os meus desabafos. Nem eu mesma me entendo.
Gabriele não precisaria contar a sua história para justificar o que disse, de como as tradições de sua família a perseguiam. Tentou sair do modelo se tornando uma adolescente rebelde. Saiu e entrou em colégios caros. Foi uma aluna insuportável. Mais tarde, meteu-se com a militância universitária, lutou por causas perdidas, flertou com ecologistas, boicotou produtos. Até que um dia cansou-se da esquerda teatral, dos ambientes esfumaçados. Enfurnou-se na biblioteca do pai. Terminou seu curso afastada de todos os movimentos. Viajou para fazer um MBA nos Estados Unidos. Não se conteve, visitou toda a Europa. Encantou-se com Paris. E teria ficado lá, em seu nirvana, não fosse a morte de seu pai. O inferno astral dessa perda ainda a persegue. No silêncio de seu quarto, muitas vezes chora. O apartamento faz parte de sua maior conquista, de seu empenho em se afastar das lembranças ruins. O seu atual emprego é uma vitória incalculável. Uma prova de conseguiria sobreviver por conta própria.
Gabriele ficou quieta. Amanda sentiu pena. Quase estendeu a mão em direção àquele rosto. Quis expulsar com um beijo a tristeza que pousou naqueles olhos verdes. Mas antes que esboçasse qualquer gesto, foi Gabriele que resolveu sair sozinha do clima em que havia imergido.
- Então, o que você ainda tem a dizer da minha vida iconoclasta?
Amanda queria dizer muitas coisas. Em vez disso, falou num impulso:
- Eu não tive a vida que você teve, repleta de aventuras, mas também não fui uma adolescente típica. Vivi parte de minha juventude sozinha porque queria estudar aqui, fazer um curso superior. Também fugi dos modelos que a minha família planejou para mim. Se dependesse da vontade dos meus pais, ainda estaria lá, naquela cidadezinha do interior, cuidando de casa, arranjando marido. Pago o preço de tê-los contrariado. Quase não nos falamos...Ou, melhor, nos falamos sim, nas quatro festas do ano. Mas sinto que os incomodo. Não demoro muito. Também quase não vou lá...Não tenho muito o que rever. – disse sorrindo, sem graça - Parte do que sei, do que sou, devo mais aos meus amigos do que a minha família. Sei o que é estar sozinha, de tentar livrar-se do peso de tentar ser alguém diferente do que a família espera.
- Aham... – Gabriele parecia entender o que Amanda deixava nas entrelinhas. Cada uma com seu drama inconfessável.
- Temos muitas coisas em comum. As minhas amigas não entendem as minhas angústias, os meus medos, as minhas necessidades. Parecem clones de minha mãe, com suas ambições mesquinhas, com suas vaidades. – Gabriele falou, frisando cada sílaba da palavra, como se odiasse definitivamente o que ela significava. Mas, depois, fitou Amanda como se buscasse nela um olhar de cumplicidade. – Viu, Amanda? Temos muito em comum, mais do que pensávamos...
Aquela confissão poderia lhe deixar feliz, mas, em vez disso, emudeceu. Gabriele a deixava fora do ar. Como poderia ser amiga da pessoa mais linda que já conheceu?
- Já que estamos sendo francas, posso dizer uma coisa para você? – Perguntou Gabriele.
- Claro.
- Você também às vezes me deixa desconcertada.
Amanda ficou em suspenso.
- Você me olha com muita intensidade. Não conheci muitas pessoas que me olhassem assim.
Aquelas palavras a deixaram desnorteada. Gabriele sabia? Ela sabia!
- Gabriele...não te olho tanto assim. Quer dizer, não é por mal.
Os olhos de Gabriele pousaram delicadamente sobre os seus como se estivessem a reconfortá-la.
- Eu sei.... – disse simplesmente. – A tal admiração...
Poderia se perder naquele olhar...deixar simplesmente se conduzir pela emoção. Mas será que aquelas sensações que a invadiam estavam apenas com ela ou era compartilhada? Não....!- “Amanda, concentre-se”. Poderia simplesmente beijá-la e dar fim a seus medos, enfrentá-los de vez. Mas pareceria estar se aproveitando da fragilidade de Gabriele e dando vazão a sua paixão...
- Gabriele, às vezes tenho medo que você se canse de mim, da minha timidez, das coisas que faço. Até eu mesma me acho um saco, insuportável...Não sei como você me agüenta.
Gabriele sorriu surpreendida.
- Amanda, você é tão boba! – continuava sorrindo.
- Ah, mas não sorria muito de mim. Eu tenho meus complexos. – Disse, sem a intenção de fazer graça. Mas Gabriele achou a sua frase muito divertida.
- Hahaha. Vou indicar a minha terapeuta para você, Amanda. Nós precisamos.
Disse isso e ainda sorriu muito e depois ficou lentamente séria.
- Não precisa mudar nada em você, Amanda, ok? Vamos apenas tentar ver as coisas com mais leveza, tá? - E deu um beijo estalado em sua face, deixando Amanda congelada, enquanto simplesmente virava a página, avisando que ia preparar o lanche.
Na cozinha, Gabriele, que havia posto fim à conversa, transformou completamente o clima que havia se instalado. Mas existia uma atmosfera ali, nova, de confiança. Amanda não queria mais olhar nos olhos de Gabriele, que procurou respeitar...mas estava definitivamente mais relaxada quanto a isso. Só Amanda estava se desarmando aos poucos, porque não se perdoava de ter dado tanta bandeira. Quase havia deixado tudo escapar, se precipitando. Tinha que recapitular urgentemente o que havia dito e feito, mas as conversas já haviam migrado para a área profissional. Gabriele perguntou sobre o futuro. Amanda disse que sonhava em abrir sua própria produtora. Era apaixonada por webdesign. Evitou comentar que no dia seguinte teria uma entrevista de emprego...contaria depois, se desse certo. Não queria parecer fracassada. Não para Gabriele.
Mas Gabriele tinha planos mais audaciosos. Um mestrado fora do país. Talvez voltar à França. Ficar por lá uns três anos...aquela revelação deixou Amanda triste. Mas era um plano, frisou Gabriele. Mesmo assim, elas seguiriam rumos diferentes, porque o futuro, para cada uma, já estava se escavando lentamente. Ela, Amanda, com sua carreira pontuada de inseguranças e possibilidades; Gabriele, com os planos que fez para si há muito tempo, sonhos que nunca abandonou de fato.
Enquanto lanchavam, Amanda tentava soterrar as preocupações e se divertir com as coisas que Gabriele dizia. Por mais que fingisse estar tudo bem, por dentro, Amanda sentia que Gabriele tinha descoberto sobre ela. Uma hora depois, estariam na frente da casa de Amanda, despedindo-se. Gabriele não desceu do carro, mas a abraçou com firmeza e carinho. “Fique bem”, disse à Amanda. “Espero que você também fique”, respondeu. Mas quando entrou em sua casa, foi como se o mundo todo caísse em suas costas. Desabou em um choro descontrolado. Chorou tudo o que havia guardado. Ficou sem forças, com os olhos vermelhos e inchados. Tinha que sair dali e conversar com alguém.

A Dança Vazia - Capítulo 4


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Capítulo 1: Depois do encontro
(por hanna-k , adicionado em 22 de Dezembro de 2004)



Um turbilhão de sentimentos e idéias assaltavam Amanda. Estava desnorteada. Tinha que falar com Rosana. Entre lágrimas e com a voz embargada, tentou alinhar uma frase, mas não conseguiu.
- O que foi Amanda, o que aconteceu? – Preocupou-se Rosana.
Amanda não conseguia falar. Ficou em silêncio por uns momentos até balbuciar com a voz trêmula:
- Eu vou para sua casa, Rosana. Me espera.
- Não, me espere aí. Você não está em condições de dirigir.
- Tá, eu te espero...
Em menos de trinta minutos, Rosana apontava pela porta, com o olhar assustado. Quando viu o estado de Amanda, apenas a abraçou demoradamente. Ficaram assim por vários minutos. Amanda voltou a chorar, mas foi se acalmando aos poucos.
- Xiii. Tente se acalmar. O que foi que aconteceu?
Amanda não conseguia parar a torrente de lágrimas que brotavam de seus olhos. A voz não lhe obedecia, mas aos poucos, foi contando seu desespero, cada diálogo, cada sensação que teve. Rosana apenas ouvia. Durante muitos anos, esse foi o papel que lhe coube. Balançava a cabeça penalizada. Não sabia, de fato, como ajudar. Não, não podia dizer o que pensava daquilo tudo. Mas, só se fosse poeta poderia fazer a defesa dos melodramas alheios. A pegaria pelos ombros e a sacudiria. “Faça um favor a si mesma e esqueça essa perua”, é o que diria, com certeza. Claro, inúmeras vezes foi muito dura com Amanda em situações como aquela, debochando do seu histórico de amores impossíveis desde a adolescência. Mas, diante daquele desabafo, concluiu que a melhor alternativa era mesmo ouvir. “Ouvir e sofrer”, acrescentaria com uma ponta de amargura. Á sua frente, Amanda tentava sopitar as últimas lágrimas que tinham caído no rosto. Não conseguia parar de chorar.
- Talvez tenha sido melhor, Amanda. – Disse, tentando minimizar a situação. De onde tinha arrancado essa frieza?
Quantas vezes tinham se revezado na tarefa de enxugar as lágrimas uma da outra? Inúmeras vezes. Mas Amanda, com certeza, era mais frágil. Não conseguia suportar decepções sem destroçar-se emocionalmente. E ela? Tinham transformado o que seria uma devastadora paixão juvenil em uma amizade sólida. E depois de anos de amizade, se consideravam irmãs.
Os vestígios daquela volúpia ainda a solapavam às vezes. Quando viu Amanda pela primeira vez, eram duas meninas inseguras. Foi dela o primeiro beijo, o primeiro gosto, as primeiras aventuras. E por mais que cada uma seguisse um rumo diferente, as teias tecidas naquele início mágico e arrebatador ainda a acompanhavam. Talvez por ter ficado mal resolvido de sua parte. Foi Amanda que se desapaixonou, que inventou outras emoções para si. A eterna busca pelo amor perfeito. E perfeita ela nunca foi.
Rosana não entendia a determinação de Amanda em buscar o amor nas situações mais improváveis e difíceis. Amanda também não entendia o porquê. Apenas apaixonava-se pelas pessoas certas nas horas erradas. Ou talvez, só pelas pessoas erradas.
Amanda estava mais calma. Tinha ido lavar o rosto avermelhado.
- Você se lembra que passou o semestre inteiro apaixonada pela professora de Português?
Amanda não queria sorrir, mas foi impossível resistir ao humor de Rosana. Passou a mão nos olhos molhados. Queria espantar a tristeza. Já tinha chorado demais.
- Por que não se esquece disso?
- Claro que não! Morria de inveja das suas provas! – Gracejou Rosana. – Você só tirava dez! Todo mundo, na verdade, morria de raiva de você.
- É, mas em compensação levava bomba em outras...
- Eu queria ter me apaixonado pelo professor de Matemática!
- Ah, Rosana, não viaja. Você nunca gostou de h...
Rosana jogou uma almofada nela. Elas riram. Amanda logo ficou quieta, pensativa.
- Amanda o que você sente por Gabriele não é amor, é neurose. Por que não tenta viver um relacionamento sadio, desses em que a pessoa que você ama, corresponde? Está assim de gente querendo você sem ter chance. Pôxa, e a Carla? Não deu certo? Ela não é uma gata, heim...Não botou fogo? Então, investe nela, amiga, tem mais futuro. Agora, você fica nessa de bela adormecida esperando a princesa encantada, não dá!
- Ah, Rosana, vai devagar, assim não! Me dá uma força, vai, como amiga.
- Você quer é que endosse essa sua loucura. Tudo bem. Posso até te dar uns conselhos, dizer o que eu penso. Mas você não vai gostar, Amanda.
Ela suspirou profundamente e se sentou ao lado de Amanda, que estava encolhida no sofá, abraçando uma almofada.
- Amanda, mesmo que você tenha algo com Gabriele, pode não passar de algo físico, de uma experiência. Pelo que eu sei, ela só sai com homens. E a situação é essa. Mesmo que vocês transem um dia, quem garante que ela irá querer um relacionamento? Você sofreu pra caramba com aquela outra lá, a Tânia, que escondia de você de tudo no mundo...Você vai se tornar uma válvula de escape da Gabriele também? Qual dessas vai te assumir: a executiva, a colunável...Ela nunca vai te assumir...É isso que você quer?
- Mas a Gabriele gosta de mim – protestou.
- Como amiga! Não tente se enganar. Pelo que você me contou, ela não está fazendo charme, nem tá rolando nada da parte dela porque senão já tinha acontecido algo entre vocês. Mas, não. Não acontece porque não existe nada para acontecer. E sabe o que mais? Você vai ficar lá, chupando os dedos, querendo mais, se submetendo a esses vexames até ela se cansar de você. Não sabia? Todo apaixonado paga mico sem perceber, se torna inconveniente, chato de galocha, insistente.
Amanda iria chorar de novo se não ficasse momentaneamente com raiva de Rosana. Quem ela pensava que era?
- Ah, ta, é assim que você me ajuda, me botando mais para baixo? Puxa, você não consegue me dar apoio. Eu já estou mal para caramba! Pensa que é fácil ficar nessa situação? Eu quero me afastar, mas não consigo. – E com um tom de quem está cansada de lutar, acrescenta - Não quero perdê-la...
- Por que não resolve logo isso falando com ela de uma vez? Conte a verdade, faz uma declaração de amor, manda flores. Puxa, faz qualquer coisa, mas sai dessa situação de coitadinha, Amanda. Eu te conheci diferente. Aliás, você nunca precisou se preocupar com a conquista, né? Elas que se esforçassem para conseguir a sua atenção. Agora, quando tem que exercer a sedução, não sabe como fazer.
Amanda sabia que era verdade. Nunca precisou conquistar. Rosana fitou seu rosto. Um dia, na escola, disse-lhe acanhada. “Você é muito bonita, Amanda”. A garota a encarou com olhar surpreso. Deixou em sua mão um bilhetinho decorado com pequenos corações e uma declaração. “Gosto de você”. No dia seguinte, ela não olharia mais aquela menina do mesmo jeito.
- Rosana, eu não posso nem pensar em seduzir Gabriele. Ela perceberia no ato. Eu já tento disfarçar ao máximo, mas ela já percebeu, tenho certeza! Se eu contar sobre meus sentimentos, sei que ela não vai entender.
A conversa se prolongava noite adentro. Rosana estava se contorcendo no sofá, afagando os próprios ombros. É, uma muralha que precisaria derrubar na massagista. Tinha tido um dia puxado no consultório. E a Amanda com seus problemas...
Rosana tentava tirar da conversa o tom sério e melodramático. Mas Amanda não estava com astral para brincadeiras. Estava sensível e desanimada.
- Sabe, você era bem mais autoconfiante antes de se meter com aquela louca da Melissa.
Ao ouvir o nome da ex, Amanda agitou-se, empertigando-se no sofá. Não queria lembrar-se do que tinha acontecido.
- Não quero falar sobre ela. – Disse, repentinamente irritada.
- Pode ficar na defensiva, mas vou falar. Aquela doida frígida acabou com sua auto-estima, isto é, ajudou a terminar o que seus pais começaram. Olha, o fato da Melissa não ter reconhecido o seu valor não configura um fracasso seu...
- Ah, não, de novo essa história? – impacientou-se. Ia se levantar e beber água. Não era só sede. Tinha que evitar aquela conversa que não lhe faria bem. – De que adianta mexer no passado? A história agora é outra: é de Gabriele que gosto agora, lembra?
- Não esqueci não, mas estou de falando que antes você sabia o que fazer, quer dizer, você tinha mais sex appeal, Amanda. Tinha um charme irresistível. Mas o furacão Melissa destruiu toda essa autoconfiança, né?
- Claro que eu fiquei com problemas...Eu me dando toda e ela enganando, me trocando por aquela mulher!
Rosana sorriu sem querer. Lembrou-se de Rita, a feia e brucutu Rita. Ela não só conseguiu conquistar a namorada de Amanda como, num piscar de olhos, levou-a embora, com tudo que tinha direito e um pouco mais.
- Pára, Rosana, já sei do que está rindo, mas não tem graça nenhuma. Tô avisando! – E pegou uma almofada e ficou batendo. Desistiu. – Assim não dá...você tá a meu favor ou contra mim? – Abandonou-se no sofá outra vez.
- Ei, Amanda, estou apenas tentando te lembrar que antes você tinha a mulher que queria, sem esforço...E até que sua fila andava rápido, né? Heim, heim – disse, provocando, empurrando-a com o ombro.
Sem querer dar o braço a torcer, Amanda segurou o riso.
- Mas olha só. Quantas vezes você se olhou no espelho nos últimos dias? Que tal dar uma repaginada? Adoro seu cabelo de ninfa de Botticelli, mas está precisando de um corte, né? E por que não pega um bronze? Você fica mais do que linda quando está bronzeada. E pára de ficar acordada a noite pensando na sua Gabriele, que com certeza está no quinto sono, e cuida de si mesma. Se quer ter de volta o antigo vigor, você tem que dormir legal, tem de parar de sonhar acordada...se é que me entende.
- Assim você me ajuda bastante, Rosana...
- Brincadeirinha, Amanda. Você não precisa de espelho nem de elogios. Você sempre foi a mais bonita da nossa turma, nem preciso dizer. O que Deus lhe deu em excesso faltou em mim...(riu). Queria um pouco de suas curvas e talvez a sua boca. Ficaria satisfeita só com um pouco disso.
Amanda sorriu. A autocrítica Rosana de sempre.
- Um pouco mais de vaidade lhe cairia bem. Quem sabe a deusa não olharia um pouco mais para você?
Amanda balançou a cabeça desalentada.
- Você não conhece Gabriele. Ela não nota essas coisas...ela tem ódio de futilidade.
- Ah, não, Amanda, não delira. Eu já vi essa Gabriele na TV e ela não me pareceu ser a pessoa que você descreve. Pôxa, ela estava abalando! Quem não quer chamar atenção não se veste daquele jeito.
- Rosana, deixa disso. Eu é quem sei. Você nunca conversou com ela. Pára de implicar.
Amanda cruzou os braços e ficou emburrada.
- Ok, vamos esquecer o fato de que ela é maravilhosa, uma deusa, etc e de que gosta de homens (argh). – Rosana fez uma pausa – Vamos focar no essencial: ela faz muita questão de sua amizade. Aliás, questão demais. Por exemplo, eu, se eu tivesse uma amiga chata como você, pegando no pé, já tinha mandado pastar. Hahaha. – Amanda não sorriu e Rosana tentou se consertar - Não é que você seja sempre assim, Amanda, mas amiga, admita, você está se superando. Eu não agüento mais a sua choradeira. Quando é que ficou tão piegas? A sua paixonite aguda está mais para melodrama mexicano e, pelo que você me disse, ela não curte muito esse lance de cultura latino-americana...Então? Tente mudar de clima: ataca essa mulher de uma vez, dá um beijo, faz alguma coisa!
Amanda balançou a cabeça. Era essa a ajuda que Rosana tinha a dar?
Pelo menos, a fazia rir. Metade de sua dor-de-cabeça tinha se evaporado com a conversa. E, para ser franca, ela tinha toda razão. Estava sendo insuportável, infantil e desajeitada. Mas não sabia como mudar ou se poderia fazer diferente.
Despediu-se dela. Tinha que dormir. O dia seguinte seria cheio. Tinha uma nova entrevista em outra agência e trabalhos esperando para serem concluídos. Arrumou a sala, as almofadas fora do lugar. O celular estava jogado no quarto. O display estava indicando ligações não atendidas e as mensagens recebidas. Ligações e mensagens de Carla, Sandrinha e de outras garotas que tinha conhecido no bar gls. Sim, poderia voltar à ativa. Poderia tentar afastar Gabriele de sua mente, de sua vida. Estava cansada demais para pensar.
Amanda passou a noite revirando-se na cama. Pensamentos repetitivos, frases que cruzavam sua mente, o incômodo insistente no corpo. Não tinha posição certa para dormir. Gabriele. Ela não lhe saia do pensamento. Queria acabar com essa obsessão, tirá-la de sua mente, mas não resistia. O seu rosto, a sua voz, seu sorriso, tudo nela incendiava. Por que tinha se apaixonado por ela, logo por ela...? Se soubesse, se pudesse ter imaginado que seria assim, novamente, teria se afastado, teria resistido. Mas a voragem de tais sentimentos não a deixava dormir. Em poucas horas teria que trabalhar, enfrentar o Marcos, a entrevista de novo emprego. E estaria péssima, com olheiras, corpo cansado, fatigada. Não resistiu. Acendeu a luz, procurou um calmante. Olhos pesados, corpo inquieto, sonhos...Gabriele.
O despertador tocou e ela levantou-se num salto da cama, tropeçando no criado-mudo, derrubando objetos. “Droga, droga”, foi despontando para o banheiro. Estava atrasada. Como sempre. Mal levantou e o pensamento de sempre insistia em lhe visitar. “Agora não!”. Tinha coisas mais objetivas para se concentrar. Desculpas para o atraso, arrumar o portifolio para a entrevista da tarde, a roupa certa, o perfume adequado, as suas falas...O tempo. Por que não se programou no domingo? “A velha Amanda de sempre”, riu de si mesma, com uma certa amargura. Precisava se livrar da auto-piedade urgentemente. “The tears that flow are not real It's from self pity”…
Arrumou-se. Estava diferente. Uma tristeza insistente deixava seu olhar um tanto amortecido. Os lábios curvavam-se. A maquiagem não estava melhorando seu estado de espírito. Rosana tinha razão. Quem sabe um corte novo no cabelo, uma repaginada geral?
Nada disso tornaria sua vida mais fácil ou mesmo, despertaria desejos em Gabriele... porém, lhe faria um enorme bem. “Que nada, Amiga, você é linda!”. Rosana! Depois de ter colocado em sério risco a sua auto-estima, ficou olhando-a com aquele velho e já esquecido olhar de cobiça. Puro saudosismo. “Pára com isso, Rosana”, brincou, atirando as velhas lembranças de onde nunca deveriam ter saído. “Ah, sim, claro, nada a ver”, desculpou-se Rosana, recolhendo-se.
Fez caras e bocas na frente do espelho. Não era vaidosa, mas estava insegura do efeito que produziria diante de seus possíveis empregadores. O seu amigo disse que a agência que iria entrevistá-la tinha uma excelente pasta de clientes e estava em busca de novos talentos na criação. Esperava que estivessem atrás de alguém especializada em planejamento, mas daria conta do recado se a vaga fosse para designer gráfico.
Um leve frio na barriga. Hora de ir ao trabalho. Clima de segunda-feira. Ninguém trabalhava ainda. Cafezinhos, conversas triviais, muita risadaria. Amanda entrou na sala e, de repente, ninguém mais riu. Olhares cravados nela.
- Uau, sensacional. Dá um giro, Amanda!
Assovios, olhares de malícia. Amanda ficou sem jeito, mas não adiantava se justificar. Explicar o que? Tinha deixado os jeans e as camisetas que usava e lá estava ela metida em um vestido preto, com um decote comportado, mas sexy.
- Segunda-feira sensacional! – Disse Paulo, chegando perto, querendo envolvê-la em seus braços.
- Não tira casquinha!
- Peraí, gente – Reclamou Amanda, desfazendo dos braços de Paulo.
- Amanda, menina, que visual é esse, em plena segunda-feira? - Interrompeu João Carlos.
Amanda suspirou. Homens.
- Tenho um compromisso mais tarde. – Foi apenas o que disse, encerrando a conversa, ligando o computador e fingindo estar absolutamente concentrada em seu trabalho.
Marcos chegou em seguida. Do canto do olho percebeu seus olhares por cima dos ombros dos outros rapazes que ainda comentavam. “Lá vem ele”, disse consigo mesma, preparando-se intimamente.
- Hummm, Amanda, o domingo lhe fez muito bem... – disse malicioso. – Não se conteve e deu uma demorada olhada de cima a baixo. – Você está deliciosa.
Ela não lhe deu atenção e continuou trabalhando.
- Não adianta me ignorar, Amanda querida. – Disse, colocando seu rosto próximo ao seu. Ela assustou-se e tentou afastar-se. – Eu sei o que se passa com você...As regras do amor, não é?
Marcos distanciou-se e ficou medindo a sua reação. Pareceu estar irritado. Cruzou os braços no peito e ficou esperando que ela respondesse. Amanda tentou continuar o que estava fazendo, mas ele insistiu na conversa.
- Sabe, quando eu propus aquela história com a Gabriele não era para ser do seu jeito. Mas você foi mais esperta do que eu esperava. Agora, mal vejo a minha namorada. Ela nunca tem tempo para mim...Mil desculpas esfarrapadas. O seu trabalho em primeiro lugar, depois você...sempre grudadas. E onde estava Gabriele domingo? Onde estava você, Amanda? Juntinhas, não é? – Amanda ergueu-se, assustada. Tentou ficar distante dele, mas se aproximava, falando ríspido e baixinho. Ele estava nervoso, mas tentava controlar-se. – Ok, aquele joguinho foi estúpido, reconheço, uma brincadeira inconseqüente. Mas está indo longe demais, Amanda, muito longe.
- Marcos, eu não sei do que você está falando. – tentou defender-se.
- Não sabe? Pois vou lhe explicar! – Marcos pegou em seu braço e praticamente saiu arrastando-a para sua sala. Fechou a porta ruidosamente.
O pessoal da agência ficou ouriçado com a cena. Olhares, risinhos, mil comentários. Para eles, tratava-se de uma briga de amantes.
- Marcos, eu não lhe dou o direito de me tratar assim. – Disse, livrando-se das mãos dele.
Ele riu cinicamente.
- Poderia lhe tratar melhor, muito melhor. – Acendeu um cigarro e tragou profundamente. – Você ainda pode escolher.
- Diga o que quer. – Amanda cruzou os braços, olhando-o.
- Você hoje está mais bonita do que o costume. O que está acontecendo com você?
Amanda enrijeceu o olhar.
- Não tenho que ficar respondendo a estas perguntas.
Marcos aproximou-se. Parecia querer apelar para a violência a qualquer momento.
- Sabe o que me deixa mais nervoso, Amanda? É que eu é que estou de palhaço nessa história!
- Mais uma vez, Marcos, eu não estou entendendo nada!
Ele riu. Mas não era um riso qualquer. Tinha ódio naqueles dentes alinhados e rinhentos.
- Amanda, os meus amigos já estão comentando! Gabriele não desgruda de você...shows, almoços, cineminha...Qualé? Você vai querer negar? A cidade é pequena, Amanda. To-dos se conhecem por aqui. Todos conhecem Gabriele. E agora, estão rindo de mim...
- Ma..mas.
- Não gagueja! Eu sei de tudo. Sou um idiota, total, completo! Entreguei Gabriele de mão beijada para você, sua .....! – Ele quase levantou a mão, que ficou parada no ar crispada.
- Pare com isso, Marcos! – Disse, retraindo-se. – Você está louco! Eu e Gabriele não temos nada uma com a outra. Ficamos amigas. Só amigas...
- Você quer que eu acredite nisso, Amanda. Não me faça rir!
- Marcos, ela é sua namorada! – Reagiu. – Eu não sou nada para ela, nada!
Ele ficou parado, sentiu um pouco da dor que existia ali. Ficou remoendo palavras que não disse. Afastou-se. Tragou várias vezes. Preparou um drink. Fuzilou um olhar para Amanda.
- Não tenho tanta certeza.
Amanda suspirou. O que ele queria dizer com isso?
- Gabriele não é mais a mesma comigo desde aquela história.
Por dentro Amanda estremeceu. Por que ele lhe dizia aquilo tudo, a submetia aquela violência?
- Mas eu não tenho nada a ver com o relacionamento de vocês.
- Claro que não! E nem terá, se depender de mim. Ela sabe de você, sabe?
Amanda gelou, quis enfraquecer as pernas, apoiou-se na parede.
Marcos riu, fumou, bebeu pausadamente, estudando suas reações.
- Ah, sim, claro que não. Mas vai saber....e sabe por que, Amanda? Por que vou acabar com seu joguinho de sedução. Vou cortar o mal pela raiz.
- Não, Marcos, não...por favor! Deixa que eu conto.
- E por que eu deixaria? Por que iria favorecer você?
Amanda recuou. De repente, estava sem chão, perdida. Encontrou forças para olhar Marcos pela última vez, com uma força que não imagina ter dentro de si.
- Acho que não tenho mais nada que fazer aqui, nesta agência. Por favor, prepare a minha demissão.
Marcos parou de beber e olhou-a surpreso. Por um instante, hesitou. E depois sorriu.
- E para onde você iria, Amanda?
- Não se preocupe com isso. Eu estou me demitindo.
Amanda saiu da sala, deixando-o para trás. Os colegas de agência estavam aglomerados lá fora. O que eles teriam escutado da conversa? O tom alterado, as frases reveladoras, a verdade.
Amanda pegou suas coisas rapidamente e saiu do prédio. João Paulo a acompanhou.
- Ei, Amanda, espera! –Pegou em seu braço, interrompendo a sua marcha. – Pô, você vai deixar a agência? Não, Amanda! Não faz isso!
Amanda queria chorar, mas controlou-se.
- Deixava ele te demitir, falava com o velho, mas agora, você perdeu seus direitos.
- Não tinha outra saída, João. – Não iria falar para seu colega de equipe. Ele não entenderia...não iria expor mais uma vez sua vida. – Deixa para lá. Eu vou me cuidar.
- Cara, mas são três anos...Puxa! E você saiu sem levar nada! Sacanagem!
- Depois você pega meus arquivos. Vou precisar...
Amanda deu um abraço rápido.
- Se despede do pessoal por mim.
- Tá, tudo bem. Se cuida.
João Paulo a olhou penalizado. Quando entrou no carro, estremeceu. E agora, o que faria de sua vida? Pensou rapidamente nas suas economias, nas contas que tinha que pagar, em Gabriele...ela saberia da maneira mais sórdida. Não tinha forças para reagir. Sabia que não tinha mais como lutar. Ela lhe odiaria. E agora, estava também sem emprego.
As lágrimas começaram a cair, sem controle. Ficou ali por um bom tempo. Perdeu a noção. Procurou recompor-se. A maquiagem tinha borrado. Ainda restavam algumas horas antes da entrevista. Tinha que reagir.
- Amanda, mas logo hoje! – Rosana ficou brava pelo telefone.
- Cedo ou tarde aconteceria...
- Quer vir para cá?
Rosana trabalhava em um consultório. Achou melhor não aceitar o convite.
- Não, estou bem...vou seguir seu conselho. Vou cuidar um pouco de mim antes da entrevista.
- Tá, amiga, mas se precisar de mim, pode ligar, ok?
- Não se preocupe.
As horas demoraram a passar. Amanda voltou para casa e organizou melhor seu portifolio. Tinha que tirar lições de seu fracasso, estudar estratégias, treinar suas falas, mostrar segurança, parar de chorar.
Hora da entrevista. Nervosismo. Ficou sentada na ante-sala do diretor. Chegou um pouco antes. Repassava conceitos. Tinha que mostrar segurança.
A porta se abriu. Ouviu vozes, sorrisos, despedidas. Uma mulher saiu primeiro da sala. Amanda não quis encarar, mas não pôde deixar de perceber. Não era um tipo qualquer, que passa despercebida. Cabelos curtos, um corpo atlético revelado pela camiseta justa, o jeans estilizado. E o detalhe do piercing instalado abaixo do lábio inferior. O porte desafiador, cheio de atitude e de perguntas. Ela também lhe percebeu. E, num átimo, lançou em sua direção um olhar malicioso e sedutor. Sorriu levemente. No canto da boca, uma covinha convidativa. O diretor ainda falava com ela, mas seus olhos já não estavam na conversa. Amanda baixou o olhar. Não queria corresponder nem dar bandeira. A moça riu novamente. Que boca! Ela permaneceu um pouco à sua frente, acertando detalhes da próxima reunião, até que finalmente se despediu.
Amanda acompanhou seus passos. Ela seguiu rapidamente, com seu andar seguro e insinuante. Suspiro. Ouviu seu nome. Seria a próxima a entrar. Respirou fundo. O diretor da agência, o Túlio, é quem iria lhe entrevistar pessoalmente. Era simpático, meio gordinho e expansivo. Tinha um enorme prestígio entre os jovens publicitários. Era conhecido pela sua criatividade, pelos prêmios que havia arrebatado. Amanda sabia que teria a sua chance de expor seus trabalhos e conversar. Não teve problemas em apresentar o portifolio. Levou uma versão digital. Ficaram passando os trabalhos no computador. Túlio elogiou algumas peças e, no final, pareceu estar satisfeito. A entrevista demorou mais do que havia previsto. Ficaram trocando idéias e experiências. A conversa adquiriu repentinamente um tom mais amistoso. Descobriram que tinham tido um professor em comum. Sorriram juntos de velhas histórias da universidade. No final, ele abriu a sua agenda e ficou com a caneta a postos.
- Então, quando pode começar?
Amanda titubeou. Quase não acreditava no que ouvia. Queria pular de alegria, mas conteve-se. Apertou a mão do diretor com firmeza. Sorriu o seu melhor sorriso.
- Amanhã mesmo!
- Ok, então vamos aos detalhes de sua contratação.
Amanda saiu dali flutuando. Estava empregada! Tinha perdido o emprego, mas estava empregada de novo! Mal podia acreditar. Queria ligar para todo mundo, mas só pensou em Gabriele.
Ficou de repente triste. Teria que enfrentar o fato de que nunca mais se falariam quando ela soubesse.
Rosana marcou uma comemoração, mas preferiu ir para casa. Mal chegou e viu que tinha um pacote na sua caixa de correios. Não tinha remetente. Abriu rapidamente. Era um DVD. Alicia Keys. Um cartão. “Percebi que você não tinha”. Gabriele. Seus olhos transbordaram-se de novas lágrimas. Ligou para agradecer.
- Oi! – Disse ela, animada.
- Obrigada pelo presente, Gabriele. Puxa...você está sempre me surpreendendo.
- Bobagem...adoro dar presente aos amigos.
Amanda incomodou-se com a palavra...Amizade não era bem o que ela queria ouvir.
- Eu sei, mas você nem tem tempo para nada....
Gabriele riu.
- Quem tem Internet e uma secretária pode tudo, querida Amanda. – brincou
É verdade. Os tais presentes comprados pelas secretárias. Mas o bilhete tinha a letra de Gabriele. Ela o fez.
- Gabriele – interrompeu – preciso lhe contar uma coisa.
Ela parou de rir. O tom de Amanda estava sério demais.
- O que foi, Amanda?
- Eu me demiti hoje.
Gabriele ficou pasma.
- Meu Deus, o que foi que aconteceu?
Amanda não quis entrar em detalhes. Não poderia...
- Bom, na verdade, não estava mais agüentando ficar ali...Foi o melhor.
- Mas isso é tão inesperado, sem planejamento...- Um pensamento lhe ocorre de imediato - Foi o Marcos?
Amanda negou.
- Não, não...não foi o Marcos quem me demitiu. Fui eu mesma que tomei essa decisão. Mas, não fique preocupada. Eu começo amanhã em um novo emprego!
Gabriele vibrou. Quis saber detalhes. Conversaram longamente sobre isso. Amanda pediu que ela não contasse nada ao Marcos. Seria melhor ele não saber. Gabriele comprometeu-se a não dizer nada. Amanda ficou menos tensa. Pelo menos Marcos não tinha contado nada ainda a ela.
- Quando você vai vê-lo?
- Ah, talvez hoje. Ele anda muito carente, reclamando que não lhe dou mais atenção...coitadinho! – Ela riu.
Amanda, não. Ficou controlando os ciúmes. Evitava passear seus pensamentos nesses tópicos, mas nem sempre conseguia. Mudou de assunto. Gabriele estava animada com seus eternos projetos na multinacional. A direção não parava de colocar mais responsabilidade sobre os seus ombros. Ela adorava desafios. Aceitava todos. “Te cuida, ok?”, pediu Gabriele. “Pode deixar”, respondeu com a voz mansa. Desligou o telefone e ficou pensando no que faria dali por diante.



A Dança Vazia - Capítulo 5

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Capítulo 1: Por que tem de doer tanto?
(por hanna-k , adicionado em 28 de Dezembro de 2004)


A adaptação ao novo trabalho foi melhor do que esperava. O medo de não dar conta foi rapidamente superado. Os colegas da agência se esforçavam para deixá-la à vontade. E Túlio chamou-a para trabalhar na criação de um novo projeto. Estava totalmente envolvida nessa nova etapa. Quase não sobrava tempo para pensar em mais nada. A não ser em Gabriele. O receio de que Marcos tivesse aberto o jogo com ela era dissipado toda vez que se falavam por telefone. Não existia uma regra nessas ligações. Quase sempre ocorriam de dia, perto do intervalo do almoço, quando o ritmo de trabalho diminuía. O intervalo de Gabriele era mais tarde, somente depois das 13h. E ela podia voltar ao escritório somente às 15h, quando permanecia normalmente até às 19h. Nos últimos dias, elas começaram a se falar também à noite, depois que ambas estavam em casa.
- Você agora quase não me liga. Já estou ficando com ciúmes desse novo trabalho – falou Gabriele, fingindo estar zangada.
Amanda sorriu.
- Ah, agora você reclama, mas quem se excede no trabalho é você, né?
- É verdade – disse pensativa – mas não queria que fosse sempre assim. Ás vezes penso que estou perdendo minha juventude nessa roda viva. As coisas de antes deixaram de ter prazer. Isso é preocupante. Cheguei a ter orgasmos mentais lendo Kotler...bem, acho que fiquei anestesiada. Estou com um tanto impaciente com tudo isso, uma ansiedade que não sei identificar.
- Eu sei como é...
Amanda quis refletir sobre o que Gabriele estaria sentindo, mas desistiu. Não queria ficar criando falsas expectativas. Aprendeu a evitar a sua própria ansiedade, mergulhando no trabalho. Agora pensava em Gabriele com um carinho imenso. Queria estar com ela, ser sua amiga. Gostaria de eliminar a excitação de ouvir a sua voz, o poder elétrico de sua presença, mas ainda não conseguia. Teria que conseguir, se quisesse permanecer junto, participar de sua vida, sem que ela percebesse a natureza de seu afeto. Então, adquiriu o hábito de enfiar as unhas na palma da mão. Fazia isso com tanta freqüência quando estava com ela, que por vezes esteve para se sangrar. Terrível essa a tarefa de renegar o próprio desejo. Acabaria como uma das personagens dos filmes de Almodóvar, à beira de um ataque de nervos.
Mas as noites estavam mais difíceis do que realmente eram. Depois de se falarem ao telefone, em ligações que nunca gostaria realmente de finalizar – mas, por racionalizar, sempre, era sempre a primeira a lembrar do horário, do tempo, o velho inimigo, e dizer que era hora de desligar. Mas ao dizer “boa noite”, era como se cortasse um dos membros, arrancasse algo de si, um pedaço importante, essencial. Ficava então lidando com essa ausência, sem saber o que fazer do tempo que restava para o sono e o cansaço a capturarem numa espécie de rendição.
Recomeçou a ler as velhas coleções que sempre lhe deram sono. Por ironia, permanecia acordada, com um imenso tédio remexendo-lhe as pestanas. Desistia. Por mais que acompanhasse as letrinhas retilíneas à sua frente, seu pensamento passeava conectado à Gabriele. E assim, passava as noites, inquieta, sozinha, domando uma fera faminta que trazia dentro de si a cada dia.
Sentia que estava ficando cansada, com reflexos visíveis em sua aparência. Olhos manchados de sono, uma certa palidez...detalhes. Não tinha mau humor, talvez, uma tristeza quase inevitável nos olhos. O pessoal da nova agência não a conheciam, não saberiam a diferença, estabelecer parâmetros de comparação. Mas sua amiga Rosana havia avaliado imediatamente a situação e intimado uma mudança imediata de comportamento. No final de semana levou-a para compras e, quase puxando-a pelo braço, a um salão de beleza. Que solução perfeita, suspirou com ironia.
- Não adianta fugir. Cabelo, pele, massagem e unhas. – Enumerou. – Não tenha pressa.
Amanda não tinha pressa. Aliás, havia perdido a noção do tempo. Os dias pareciam não se esgotar com facilidade. Era tudo uma questão de se adaptar, repetia para si mesma. “Não se adapta às coisas ruins, Amanda. Isso é masoquismo”, corrigia Rosana.
Sim, é verdade. Coisas ruins...Não poderia nunca dizer que o que vivia era ruim, exceto porque não era compartilhado. Amar sem ser correspondido não parecia ter vantagem alguma, pelo contrário. Era uma espécie de tormento, de auto-flagelação, uma espécie de punição dolorosa e ao mesmo, repleta de pequenos momentos prazerosos talvez, propiciados pela imaginação fértil. Estremecer, por exemplo, ao sabor de um beijo que não aconteceu – mas que poderia acontecer...um dia. Um roçar de mãos – por acaso, um olhar destituído de intenções, mas precioso – pode-se guardar em algum lugar da memória para lembrar depois. E as lágrimas que transbordam os olhos, todos os dias, nos lugares mais inesperados, apenas porque uma dessas lembranças eclodiu sem pedir licença. Lágrimas inoportunas.
- Por que está chorando, Amanda?
Ela apressou-se a limpar as lágrimas, com a palma da mão. O rosto ficou brilhando, novas lágrimas surgiram então.
- Nada, não é nada.
- Ninguém chora assim por nada.
Não quis falar. Não conseguiria. Estavam ali, olhando álbuns de retratos. Viu Gabriele passeando por tantos lugares, abraçando tanta gente estranha em locais que nunca esteve. Sentiu uma onda de emoção tomá-la de assalto. Não pôde evitar.
Sem saber o que fazer ao certo, Gabriele a abraçou com segurança e carinho. Passou a mão em seus cabelos. Amanda tremeu violentamente em seus braços. Para Amanda, Gabriele tenha interpretado aquele tremor como soluços. Mas era apenas por estar próxima demais de seu corpo e por sentir o seu calor. Não tinha podido manifestar-se como queria naquele dia. Ficou apenas ali, silenciosamente, aninhada em seus braços, sem querer abrir os olhos. Não sabe como adormeceu de chorar. Quando abriu os olhos, lá estava ela, olhando-a, com mil perguntas atravessadas por entre os cílios. Mas não fez nenhuma. Não achou conveniente reabrir as possíveis feridas.
- Está melhor?
Amanda sentou-se, de repente, envergonhada da cena. Tinha-se mostrado frágil. Isso era tudo o que não queria mostrar para Gabriele. Com certeza, era uma das facetas que Gabriele desdenharia. Ela lhe observou atentamente, tentando atravessar o seu mutismo. Trouxe chá ou quem sabe uma bebida mais forte. Não se lembra de ter pedido. Bebeu alguma coisa de sabor diferente. Precisava acordar de sua letargia. A sua cabeça estava confusa. Teria dormido ou desmaiado, agora não sabia. Gabriele a perseguia com seu olhar preocupado.
- Você está se sentindo bem?
De fato, não. Cabeça zonza, olhar pastoso, um certo descompasso. Quando abriu de novo os olhos, não reconheceu mais onde estava. Não era seu quarto, não havia voltado para casa, definitivamente...estava sobre a cama de Gabriele. Agitou-se de repente. O que tinha acontecido? Olhou para o lado. Alguém tinha dormido ali. Sinais. Quando ia se levantando, Gabriele surge à porta do quarto, lançando-lhe um olhar preocupado e diligente.
- Amanda? Você me deixou preocupada ontem...
Aproximou-se. Estava de babydoll. Nunca tinha visto ela assim, despojada, intima. Sentiu ondas de calor por dentro, explodindo. Sem poder sustentar tal visão, desviou o olhar instintivamente, atordoada. Olhou para si mesma. Estava com outras roupas, que não as suas. Sentiu-se envergonhada, quis meter-se de volta na cama, sob os lençóis. Ela quem tirou suas roupas e vestiu aquelas? Tinha medo de perguntar. Mas Gabriele não estava preocupada com suas cogitações. Queria saber se ainda sentia algo. Quase não ouvia. Sua mente fazia ruídos mais urgentes.
- Amanda? – Ouviu-a dizer perto de si. A mesma inflexão preocupada. Fixou os olhos tímidos nela. – Você não está me ouvindo falar com você?
- Não... – Balbuciou. Levantou-se meio cambaleante, querendo ir a outro lugar, qualquer outro que a afastasse de perto de Gabriele.
- Aonde você quer ir? – Gabriele estava confusa e começava a ficar assustada com aquele comportamento. Deteve sua fuga, segurando sua mão. – Amanda, por favor, pare.
Amanda congelou. Aquele apelo...não podia ignorar. Voltou-se para ela, com um olhar de súplica. Estava despedaçada por dentro. Não podia mais fugir. Se fosse para morrer, poderia desaparecer ali, em seus braços. Começou a chorar. Não um choro qualquer, com começo, meio e fim, como um daqueles dramas italianos. Se pudesse, gritaria...mas não tinha ar em seus pulmões. As lágrimas desciam em curso livre, pelo rosto, banhando o seu colo. Gabriele a olhava sem entender. Como entenderia? Ela própria não poderia interpretar tal cena se não soubesse do que se tratava. Uma mulher arrebentada por uma paixão inequivocamente prestes a ser rejeitada.
- Amanda, meu Deus, o que está acontecendo com você. Me fala, por favor...- Gabriele estava prestes a chorar também.
- Eu não agüento mais, Gabi...- disse finalmente, meio às lágrimas. – Eu não suporto mais isso.
- Isso o quê, Amanda? – Ela estava confusa ou não querendo adivinhar o que estava por vir.
Amanda deixou-se tragar pelo fluxo de sua própria dor e falar sobre o que a atormentava há vários meses. Para ela, o tempo não fazia a menor diferença. Como contabilizar cada segundo que pensou nela e dentro deste microespaço de tempo, as dores que sofreu? Como simplesmente dizer “Eu te amo” se isso não conseguia expressar o que realmente sentia? O tormento sem nome que esse sentimento provocava simplesmente porque não poderia tê-la para si? Como explicar as vezes que tentou parar o tempo para guardar sua imagem na memória, logo ela, esquecida e dispersa por natureza? Um simples “Eu te amo” não resolveria a questão. Poderia arrolar mil páginas de sensações que havia sentido nesses meses todos, cada uma diferente da outra. Era muito pouco dizer “Eu te amo” quando o que sentia não cabia em palavras.
Gabriele a olhava sustentando o suspense, esperando talvez alguma revelação inofensiva, do tipo que amigas contam para outras quando estão no limite, desesperadas com um segredo. Definitivamente, ela não estava preparada para ouvir uma declaração.
Amanda tentou fugir, mas Gabriele não deixou. Segurou firme na sua mão, a fez sentar na cama e olhar para si. Queria uma explicação.
- Não me deixe ficar preocupada. O que está acontecendo, por que está agindo assim?
Seu olhar queria escapar daquele verde ofuscante, mas ela não deixava. A perseguia. Aquela proximidade era mais perturbadora do que qualquer palavra que ela pudesse dizer. Estava como um dique prestes a romper. Aqueles olhos, aquela boca tão próxima, o perfume exalado por aquele corpo. Não pode conter-se. Não foi a abordagem que sonhou, mas a que seus sentidos providenciaram. Segurou aquele rosto entre as mãos e beijou sua boca com urgência. Não foi um beijo romântico, mas misturado a lágrimas, tremores e soluços. Gabriele colocou suas mãos sobre as suas e tirou-as delicadamente de si. Olhou-a nos olhos, admirada, mas tranqüila. Sua voz era doce, mas firme:
- Amanda, o que pensa que está fazendo?
Não, ela não tinha correspondido ao beijo.
Ficou envergonhada de ter tentado. Agora, o que mais temia estava acontecendo. Se pudesse, fugiria dali sem que ela percebesse. Sumiria com sua memória também. “Esqueça, por favor, esqueça”. Mas não seria possível. Aquela cena ridícula tinha mesmo acontecido. E ela estava em pé, como uma tonta, tentando achar as próprias roupas...mas só conseguia ficar mais desorientada, como um títere embriagado. Gabriele ficou também de pé, observando-a, calada. Queria aproximar-se e detê-la, mas sabia que seria inútil.
- Amanda, fique, vamos conversar...- pediu.
- Não, não precisa Gabriele. Eu já sei de tudo o que preciso saber.
- Mas eu não, Amanda. Eu não estou entendendo nada. Você precisa me falar.
Amanda sentiu-se inundar por uma dor que, de antiga, havia virado mágoa...amor recolhido pode assumir diversas facetas. Essa era uma delas.
- Não precisa ter pena de mim. Não quero a sua pena. Fique com ela! Não quero também que ria de mim. Eu mesmo posso rir, quando quiser. Basta me lembrar de quantas vezes chorei por você, em vão! Eu sabia que você não iria me amar, como amo você. Não pensei que pudesse. Não esperava isso de você. Você já me deu muito nesses meses. Algo que não posso nem mesmo devolver para você... – Estava gritando ou apenas se expressando com mais intensidade? Não saberia reconhecer a diferença naquele momento. Gabriele ficou ali, sem saber o que fazer, como se portar. A verdade a pegara de surpresa. Não podia crer...mas se um dia havia suspeitado, o que fizera com sua suspeita?
- Amanda, acalme-se. Não precisa ser desta forma...vamos conversar. – Tentava interceptá-la, acalmá-la, sem sucesso.
Aquele tom de voz, entre a complacência e a doçura, costumavam deixá-la dócil, desarmada...mas naquele momento, estava irritada consigo mesma, não tinha mais como voltar atrás. Seria como entregar-se ao fracasso, reconhecer que deu um passo em falso.
- Não, Gabriele, não temos mais o que conversar. – Disse enxugando as lágrimas que insistiam em cair. – Eu não posso nem mesmo ficar mais aqui. Não suporto a idéia de ver você me olhando com esse olhar de comiseração...não quero a sua pena! Eu queria ser amada. – Disse isso com intensa dor – Eu sonhei com esse dia, mas não pensei que fosse ser assim, como uma liberação desesperada. Imaginei frases de amor, beijos de comemoração. Não isso, a minha exposição ridícula.
- Amanda, eu... Eu não sei o que lhe dizer, estou surpresa. Mas isso que você está dizendo é monte de absurdos. Por isso eu peço que respire fundo, pense melhor...me escute.
Ela fez silêncio. Amanda amoleceu o corpo. Deixou as próprias roupas amarrotadas sob as suas mãos penderem ao longo do corpo. Por que ainda estava ali?
Gabriele puxou-a para si. Estava passando a mão em seu rosto, enxugando as suas lágrimas, abraçando-a como se abraça uma criança. E então falou.
- Eu gosto de você, Amanda. De verdade. É um sentimento bom, que me preenche. Eu sei que você gosta também de mim. – A sua voz se tornou mais terna e então, completou, selando a sua resposta – mas são sentimentos diferentes. Eu nunca pensei em você de uma outra maneira. Eu sei que você tem sonhos que eu não tenho para nós.
Amanda não reagiu com violência, apenas afastou-se.
- Eu sei e é por isso que a nossa amizade termina aqui. Não vou mais procurá-la. Fique tranqüila.
Gabriele agitou-se, procurou segurar sua mão, mas ela fugiu ao toque.
- Não, Amanda. Podemos continuar amigas. Você não tem por que ter vergonha do que sente...
Amanda quis enfurecer-se, suspirou. Falou em voz firme.
- Você não entende, Gabriele! Eu é que não posso ficar perto de você. Me dói olhar para você, sentir a sua presença, sentir a sua ausência...ficar perto ou longe, dói do mesmo jeito. Você não sabe o que é estar apaixonada desse jeito, o que é chorar de saudade, o que é sentir o arrepio de uma coisa que você pensou e que nunca vai acontecer... – Amanda calou-se, enxugando as lágrimas e abrasando o próprio corpo – Não posso mais continuar...
Em silêncio, apanhou as roupas do chão e vestiu-se apressada, sumindo dali, sem olhar para trás. Poderia desabar no corredor, mas não o fez. Correu para o carro. Ficou sem vontade de dirigir. Apenas saiu do condomínio, sem enxergar direito. As lágrimas impediam a sua visão. Parou alguns metros depois, saltando desorientada. Ainda nem eram 7h da manhã.
A rua estava deserta. Um vento frio açoitava a sua pele. Mas não era o frio que provocava o estremecimento, mas um terrível vazio em sua alma. Pela primeira vez na vida, não sabia para onde ir. E tudo o que pensava e acreditava, havia se perdido. Como em um hiato. Um pensamento que escapava em seu significado, uma palavra com seu som inaudível.
No céu, a despeito de seu desligamento, as nuvens se separavam sem pedir permissão. Buzinas estridentes rasgavam o silêncio. Nada disso ela ouvia. O oco em que havia se metido. Cabeça baixa, girava em torno de si, enquanto observava a sua própria desorientação. Uma bússola sem norte. Um cálculo imaginário: um passo atrás do outro, sem sentir as pernas executando o seu balé desconcertante.
E em que agonia afundara os pés, em sua caminhada sem rumo? A própria morte não lhe chamaria atenção.
O olhar apagado, o fio riscando a face um dia chamou de boca, sem o riso – antes fácil - à mostra, e a língua úmida, metida em sua gaiola.
Não tinha mais motivos para sorrir.
Um dia você descobre que sua vida é mesmo uma coisa desconexa. E sente pena de si mesma por ter acreditado em sonhos, por ter investido em uma engenharia romântica. E sofre por perceber que tudo fora uma fantasia. Mas que a dor, apesar disso, é bem real.
E você procura pôr um sentido nesses fios sem meadas. Mas não tinha forças para abrir a boca.
Estava de repente em casa. Como havia chegado ali? E a quanto tempo estava deitada em sua cama, imóvel?
Poderia perder a noção do tempo outra vez e só acordar um século depois, com todas as dores cicatrizadas, mas quem ensinaria esse truque?...ainda assim, teria todos aqueles terríveis segundos para passar. Poderia enganar tais minúsculos desordeiros com piadas sem gosto. Sua cabeça estava confusa. Há quanto tempo não bebia? Ouviu batidas em sua porta...ruídos distantes. Foi abrir. Rosana. Ela estava ali, em seu socorro.
O sabor na boca. Acordou lentamente. Quis colocar a mente em ordem. Por que isso estava ficando cada vez mais difícil?
- Você mete medo em mim, às vezes... – Comentou com ar de preocupação.
Não teve forças para responder. Nem mesmo por que motivo dizer algo. Tinha perdido a vontade de falar. As palavras tinham vida própria. Se perderia novamente em seu silêncio. Queria apenas regurgitar as últimas horas e proclamar a sua total falência de sentidos. Abraçou o travesseiro e mordeu o lábio inferior. Gostaria de sentir dor de novo. Mas não. Gosto amargo.
- Amanda, não, Amanda, pare de se machucar ou vou ter que te dar um calmante... Por favor, amiga, fala comigo... – suplicou.
Ela estava sendo dramática ou apenas não conseguia fazer de outro modo, pensou. Perder um amor platônico não era o fim do mundo. Quantos já havia perdido e nem tinha feito tanto escândalo? Talvez significasse algo mais, diferente do que estava acostumada. Amores previsíveis, que se substituem facilmente.
Poderia apenas cuidar dela e esperar que recuperasse a sanidade. Era domingo. No dia seguinte teria que ir trabalhar. Suplicou intimamente por um milagre. Algo que mudasse radicalmente por dentro e a fizesse reagir, esquecer do que havia ocorrido. Queria poder dividir metade daquela dor. Abraçar com força aquele corpo que se fazia inerte, enxugar aquela torrente interminável de lágrimas...ou tentar provocá-la, fazer desabafar.
Gabriele havia ligado para ela. Não sabia como ela descobriu seu telefone. Amanda esqueceu seu celular em sua casa. Alguma coisa no display indicava que seria ela, Rosana, a sua melhor amiga? Coraçõezinhos e uma musiquinha ridícula...Coisas de Amanda. Gabriele já sabia de tudo... pelo seu tom de voz. Estava preocupada. Amanda havia saído sem rumo, desorientada. Havia deixado muitas coisas para trás. Depois mandaria entregar o celular e os demais objetos. Importante era estar com ela agora, porque poderia estar precisando. Foi essa a mensagem cifrada, sem detalhes...Rosana percebeu que tudo estava encerrado naquele conto de fadas que Amanda estava tentando escrever.
Olhou para ela, de olhos fixos, corpo imóvel, olhando não sei para onde. Por que ela não reagia?
No dia seguinte, não iria trabalhar. Estaria fraca demais para isso. Sofreria sozinha, imersa em seu próprio mundo. Quem poderia entender o que ela estava passando? Rosana teve que dar suas próprias desculpas no trabalho e faltar. Ficaria ali, minuto a minuto acompanhando aquele exorcismo silencioso. Apenas abraçando, consolando, sem ter o que dizer. E que poder teriam as palavras naquele momento?
Gabriele ligou mais tarde. Eram mais ou menos 19h. Estava saindo do trabalho. Disse que iria ficar monitorando o estado de Amanda à distância, já que ela estaria demasiadamente sensível para vê-la.
- Não entendo o que você quer, de verdade. – cortou Rosana. – Entregar as coisas dela, tudo bem. Mas ficar rondando, não sei se é uma boa idéia.
Gabriele ficou por uns segundos em silêncio.
- Você é amiga dela. Deve entender o que é sentir amor sem sexo, desinteressado. Eu posso gostar de Amanda, querer que ela esteja bem, sem necessariamente querer ter um romance com ela.
- Infelizmente não é o que ela deseja. Por isso, fique longe mesmo até Amanda se recuperar.
- É o que você acha, mas eu e Amanda ainda não tivemos uma conversa sobre esse assunto. Enquanto não tivermos, não ficarei tranqüila.
Rosana suspirou. As histórias de sempre.
- E o que mais vocês têm para conversar? – De repente impaciente, emendou - Por favor, você sabia que ela sentia, não é? Fez-se de desentendida. Isso foi muito egoísmo de sua parte.
Gabriele não reagiu. Poderia ficar ofendida. Responder à altura. Mas não iria ficar batendo boca pelo telefone. Nem sabia ao certo quem estava do outro lado. Se ela sabia ser direta, ela também. Mas tentou manter-se calma.
- Admito que não prestei atenção devida aos detalhes. Passei por cima dos sinais. Isso por acaso é crime? Quantos amigos já estiveram apaixonados por você? Convivi com isso a vida toda, por que teria que agir diferente agora?
Rosana revirou os olhos. “Que arrogante!”. Gabriele continuava a falar.
- Não foi por egoísmo. Era confortante tê-la por perto, compartilhar de sua vida, sairmos juntas. Temos gostos parecidos, muitas afinidades. E você pode não acreditar, mas eu gosto muito de sua amiga...Infelizmente, só não posso corresponder à natureza de seu afeto. Isso não significa que quero que ela sofra por mim. Não acho justo.
- Nem tudo na vida é justo. – Disse impaciente - Agora, se quer mesmo ajudar, afaste-se. O seu carinho de “amiga” só iria prejudicar ainda mais. Ela não está em condições de discernir. Se você se aproximar para tentar ser amiguinha de novo, ela pode entender que você está interessada.
- Entendo... – Disse Gabriele perceptivelmente decepcionada. – Mas se não lhe aborrecer muito, irei ficar checando como estão as coisas com você...
- Tudo bem. Não me oponho.
E a conversada estava encerrada. Um mensageiro trouxe as coisas de Amanda no final do dia. Rosana recebeu o pequeno pacote lacrado contendo o celular e outros objetos esquecidos por Amanda em sua saída desatinada. “Melhor assim”, pensou Rosana, olhando Amanda dormir, invadida por um enorme vazio.



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A Dança Vazia - Capítulo 6


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Capítulo 1: Amanda tenta juntar os pedaços. Novos fatos acontecem
(por hanna-k , adicionado em 4 de Janeiro de 2005)


Capítulo 6

Amanda não se recordava ao certo quem lhe havia assegurado ser primordial possuir experiência para fugir da repetição dos erros. É? Pois a lição não deu em nada. Vivia sempre errando, caindo nas mesmas armadilhas. Talvez, não fosse ela e um punhado de outros românticos incuráveis que conhecia, a humanidade estaria livre de uma boa parcela de tolos.
Sentia-se irritada, profundamente irritada, com a própria impulsividade. Encenou cuidadosamente sua declaração de amor. Não teria choro nem ranger de dentes, muito menos lágrimas de frustração. Se não era o que tanto tinha planejado, então por que fez aquilo, daquela forma totalmente irracional, desajeitada?
Ela sempre teve uma imensa dificuldade de entender essa forma complexa que se chama amor. E suas variações, fornidas entre os meandros de valores como a devoção, a entrega e o perdão, solenemente rejeitados pela sociedade moderna. Se fosse um simples problema de atração sexual, estaria tudo resolvido... “Ah, sim, o Admirável Mundo Novo. Amor, não; sexo, com certeza”, repreendeu-se instantaneamente. “Então é isso? Amar significa estar sozinho e, por contradição, nessa busca infame por alguém que não existe?”, pensou.
- O seu problema foi ter lido tanto aquela literatura romântica impregnada desse pieguismo repugnante...- zombou Rosana, sempre prática. – Eu te disse que aquela tranqueira melodramática ainda ia te prejudicar. Você deveria ter lido Anais Nin, como eu...Nunca tive problemas.
- Ah, tá! – debochou Amanda. – Nunca teve problemas...Poderia enumerar uma lista bem numerosa de problemas. Problemas que começam com A, B, C...o alfabeto inteiro.
Rosana parou de sorrir.
- Claro, tive problemas reais. Agora ficar perdendo tempo com problemas imaginários, nem pensar.
Amanda imergiu em seus pensamentos. O seu amor frustrado por Gabriele era tudo, menos imaginário.
Depois de três semanas ou mais molhando o travesseiro por causa do ocorrido, sabia que tinha perdido um pouco a razão. Tentava recobrar a sanidade lentamente, mas estava sendo difícil esquecer, superar. Seus sentimentos haviam se amalgamado em um emaranhado inextricável de palavras, lembranças, odores, sorrisos.
“Qual o filme que mais te fez chorar?”, perguntou Gabriele. Estavam assistindo naquele dia ao DVD que Amanda ganhou de presente. Ela pensou rapidamente. Já tinha chorado tanto em sua vida. “Moulin Rouge”, disse num impulso. Gabriele arqueou a sobrancelha. Sempre fazia isso quando queria divertir-se com o que ela dizia. “Humm...”. Lembrou-se também de “Doce Novembro” em seguida.
Gabriele observou: “Você parece gostar de histórias de amor, com final infeliz”. É verdade. A reprise inadvertidamente histriônica de sua própria vida. Gabriele olhou-a nos olhos e sorriu. Ela pretendia argumentar que a vida era bem mais do que estar amando, apaixonada, envolvida com alguém, mas relutou em dizer o que pensava sabendo que Amanda era romântica por natureza. Em vez disso lembrou que, talvez, o romance cumprisse uma função importante na vida das pessoas. “Acredito que se o sexo não está necessariamente conectado a uma verdade, exceto a do corpo, o romance representa o desejo da ligação permanente, obrigando as pessoas a lidarem com suas próprias verdades”, explicou. Amanda parou de comer pipocas e olhou para ela. “Vou levar um tempo para digerir essa teoria...”. Riram.
Na realidade, lembrando esse episódio, poderia pressentir ai a verdade que não queria ver. Gabriele não nasceu para amar como ela pensou. Tinha sempre alguém do lado, mas ninguém que amasse de fato; eram muletas convenientes para passar o tempo. Quando ameaçava se apegar demais, se desligava. Ela nunca poderia corresponder a seus sentimentos. Estaria acima de suas capacidades.
Poderia dar dimensão nova a tudo que passou ou a tudo o que foi dito de maneira inesperada, com aquela estranha voz. Poderia agradecer de ter escapado de uma eterna espera. Mas não, por enquanto não estava conseguindo. Pelo menos, gostaria de pôr ordem na instabilidade, na vontade de chorar até mesmo assistindo propagandas de biscoitos na TV. Rosana tinha confiscado contra sua vontade todos os discos que, ao ouvir, desatava a chorar. Roubou sua fotografia digital de Gabriele, os DVDs que ganhou e cometeu o desplante de fiscalizar sua correspondência digital. Irritou-se de verdade com essa vigilância, mas acabou admitindo que se ela não fizesse, não poderia passar por esses dias sem desmoronar.
Suspiro. Por outro lado, Rosana tinha o hábito quase sádico de ficar desdenhado de sua dor. “Amanda, só Ofélia se afundou no lago por causa de um amor perdido. Nós somos otimistas incuráveis, lembra? Sempre superamos as coisas mais difíceis. Vamos ler de novo Pollyanna e rir até dar dor de barriga; vamos voltar ao tempo em que o Pequeno Príncipe era tudo de bom...hiii, esqueci, tem frases prontas demais, ok, vamos ler o que você preferir”.
Amanda sorriu amargamente. Sabia que Rosana estava se esforçando para lhe retirar daquele insuportável atoleiro sentimental. Quando não suportava mais sua choradeira, se revezava com as demais meninas da turma. Ou todas juntas, em programas que elas nem mais faziam. Tudo para ajudá-la.
Os dias estavam se passando arrastados. Queria apenas apertar o “clear” e esquecer. Mas cada palavra, cada gesto, cada cena se reprisavam em sua mente. Ainda levaria semanas para se restabelecer. Ou não?
Estava mais magra do que já foi. Olhos fundos, perdidos. No final do dia, quando estava novamente sozinha em casa, pedia em uma prece silenciosa apenas para adormecer.
Um dia após o outro.
Rosana estava ocupada. E aquele dia não era diferente de outro, particularmente estressante. Gente demais no consultório. Conversas, crianças chorando, o ar viciado e preso na sala refrigerada. Ela estava um tanto distante de tanto ruído, atendendo pessoas. Pelo menos, tentaria colocar uma outra cara, que não a de irritação, nessa tarefa. Nem sempre conseguia. Estava cansada da rotina de ficar acordada com Amanda, enxugando suas lágrimas, enquanto seu próprio emprego a esperava pontualmente às sete.
O celular tocou a música característica. Olhou o display e fez uma careta, variação de irritação e enfado. Gostaria de dizer um alô pouco educado, mas não o fez. Procurou um lugar discreto para atender.
- Alô – disse a voz.
- Olá. Não poderemos conversar muito porque estou extremamente ocupada aqui no trabalho.
- Desculpe-me se a incomodo, Rosana. Liguei apenas para saber como Amanda está.
Rosana respirou fundo. Era difícil controlar a sua vontade de chutar o pau da barraca cada vez que Gabriele ligava.
- Como espera que ela esteja?
Gabriele ficou em silêncio, constrangida. Rosana balançou a cabeça, arrependida.
- Escute, Gabriele, me desculpe a grossura. Estou meio estressada. – Amenizou a voz, mas não tanto. Às vezes que tentava ser amena fica artificial demais. - Ela está se recuperando aos poucos. Daqui a um tempo você será uma lembrança enterrada, acredite.
- Você sabe que não é isso que eu quero. Gostaria de continuar amiga de Amanda, quando tudo isso passar.
Rosana riu ironicamente.
- Ás vezes penso estar tratando com duas adolescentes. – Fez uma pausa e tentou continuar apesar do riso – Gabriele, o que Amanda tem não é uma gripe passageira, que passa sem deixar conseqüências. Talvez nunca mais vocês sejam amigas de novo...você está preparada para isso?
Silêncio do outro lado da linha.
- Eu...
Rosana esperou que ela dissesse algo. Mas ela acabou se despedindo rapidamente.
“Essas garotas enlouquecem meu juízo...”.
No outro lado da cidade Amanda estava com os olhos mergulhados na tela do computador. Mal distinguia a natureza do burburinho no interior de sua sala. Estava trabalhando em uma campanha extremamente complexa que iria durar vários meses, com peças gráficas, audiovisuais e publicidade online. Não estava sozinha no processo, mas Túlio, o diretor da agência, queria que ela bolasse a linha geral da campanha. Estava metida nisso agora.
Não sabia como Túlio tinha suportado a sua dispersão nos dias ruins. Parecia adivinhar o que se passava por trás de seus olhos repentinamente cinzentos. Por um tempo, forçou-se a voltar ao ritmo de trabalho. Não sabia agradecer por ele ter sido tão paciente. E agora queria se entregar de corpo inteiro ao trabalho. Tanta dedicação e no final de algumas semanas, ele estava empurrando-a para casa para descansar. Era totalmente novo isso, considerando que Marcos, seu antigo chefe tinha uma postura de “quanto mais melhor”.
Foi quando ouviu uma voz firme, mas impregnada de sensualidade, perto de si.
- Então, conseguiu o seu emprego.
Quando levantou os olhos, viu a moça de outro dia, de pé, junto a seu módulo, olhando-a com aquele certo olhar, sorrindo aquele mesmo sorriso. Nervosa, bateu sem querer a mão sobre a mesa e derrubou o conjunto de lápis e canetas coloridas. Ela se abaixou junto com Amanda para apanhar os objetos no chão.
- Deixo você nervosa? – Ela riu.
Amanda ficou enfezada com a observação.
- Claro que não. Você me assustou.
Ela recompôs a mesa e ficou de pé, na defensiva. Tinha cruzado os braços e agora ficou esperando que a estranha se afastasse, deixando seu ar escapar livremente dos pulmões. Tinha ar preso na garganta também. Se alguém falasse com ela agora, com certeza não conseguiria falar direito. A moça riu. Tinha um sorriso maravilhoso, maroto, quase provocador. Mas a insistência de seu olhar a deixava particularmente irritada.
- Ok, vamos começar isso de uma outra maneira. – Disse, desistindo de ficar parada ali, esperando que ela dissesse algo.
- Não fomos apresentadas ainda, mas não preciso que ninguém me apresente – Sorriu do próprio gracejo - Meu nome é Paola Krutz. Sou cliente da agência. Por isso, antes que deseje me ver pelas costas daqui para frente, aviso que vai ser tarefa difícil. Estou começando uma nova campanha aqui. – Sorriu novamente.
Aquilo era uma promessa ou uma ameaça? Amanda se sentiu profundamente incomodada com a estranha. Lá estava ela, de novo, à sua frente, com aquele porte atlético, provocando-a, flertando com ela abertamente. Passou os olhos de soslaio pela sala e viu que todos estavam trabalhando, sem se importarem uns com os outros. Respirou aliviada. O que pensou? Que na sua testa estaria piscando em néon as suas indiscrições? A moça também percebeu seu passar de olhos e sorriu mais uma vez, procurando os seus olhos, inclinando-se sobre eles, como se quisesse saber o que se passava por dentro deles. Seu olhar era penetrante. Retraiu-se.
- E o seu nome?
Amanda saiu de sua letargia e correspondeu ao aperto de mão firme e curto de sua interlocutora. Sentiu que a mão de Paola queria se manter mais tempo no toque da sua, mas retirou-a apressadamente.
- Amanda.
- Apenas Amanda? – Provocou, sorrindo, enquanto roçava o dedo pelo piercing prateado que estava grudado abaixo do lábio inferior.
Vendo a cena, Amanda imaginou que aquilo era quase uma sinalização de desejo...
- É assim que costumam me chamar. Apenas Amanda.
A outra ficou esperando o complemento e ela acabou dizendo a contragosto seu sobrenome.
- Pois bem, Amanda Carvalho...preciso lhe confessar algo – Fez uma pausa e ficou analisando suas reações - Eu fiquei observando-a de longe, entretida em seu trabalho. Notei que é compenetrada, persistente. Mas, naquele dia, no dia da sua entrevista, me diverti com sua timidez. Não que goste de pessoas tímidas. – Avisou, com um certo brilho no olhar - Hoje, depois de tê-la visto aqui, supus que tinha conseguido o que veio buscar. Fiquei muito feliz por você. – Sorriu e manteve o sorriso nos lábios quando concluiu seu pensamento - Bem, agora, terei um motivo a mais para vir aqui.
Amanda não conseguiu esconder a sua surpresa. Ela era mesmo direta. Olhou para aqueles olhos cor de mel que sorriam para os seus. Mas não conseguia sorrir, corresponder. Tinha cruzado e descruzado os braços e agora apertava o encosto da sua cadeira, como se quisesse estancar uma hemorragia.
- Eu...quer dizer, talvez não trabalhemos juntas. Túlio ainda não me passou nada.
Estava constrangida e ela nem dava qualquer importância ao fato de estar lhe paquerando em plena luz do dia, dentro do seu ambiente de trabalho.
- Talvez eu é quem queira que você trabalhe comigo – Disse, insinuante.
Amanda resolveu que era hora de dar um firme basta aquela paquera.
- Aqui eu sou paga para trabalhar e é o que estou tentando fazer, por acaso...Não gostaria que confundisse as coisas.
Paola sorriu, mostrando os dentes perfeitos.
- Nem pensei diferente. – Disse olhando-a. – Eu nunca confundo as coisas.
Amanda sentiu seus olhos retraírem-se. Detestou a arrogância daquela mulher fincada em seu frente. Queria expulsá-la, fazê-la ir embora. Não precisava de mais problemas em sua vida. Já os tinha demais.
Tentou modular a voz, para que ela saísse baixinha, como se confiasse um segredo ou pedisse um pouco de cumplicidade.
- Eu não quero me prejudicar no trabalho...eu sou nova aqui, estou tentando me encaixar...
- Não vou prejudicá-la, Amanda. – disse, inexplicavelmente carinhosa – Eu só estou checando possibilidades.
O rosto de Amanda ficou em brasas. Nunca tinha se sentido assim, meio irada e vulnerável ao mesmo tempo. Paola ficou ali, parada, olhando-a, estudando as suas reações. Também não pôde deixar de observá-la. A camiseta regata, colada ao corpo, revelava-lhe os braços esculpidos e sobre os bíceps, pequenas tatuagens em estilo tribal. A calça curta, meio folgada nas pernas e tênis. Não parecia ser a imagem de uma empresária, mas de uma menina amolecada, apesar de presumir o custo para manter todo aquele estilo.
- Não precisa fingir que não, Amanda. Naquele dia, nós estabelecemos contato. Eu olhei e vi quem você era. Você também me sacou. Então, por que bancarmos duas garotas desentendidas e complicadas? Vamos simplificar as coisas. Eu já sei tudo o que preciso de você: seu nome. E você já sabe o meu.
Amanda suspirou. O cheiro dela a invadiu. Perfume doce, com sabor de tangerina.
- Não quero que me importune no meu trabalho. – Disse, como se estabelecesse um acordo.
- Combinamos fora do seu trabalho, então? – Respondeu imediatamente.
Queria se abrir com a estranha e dizer que era impossível se envolver com outra pessoa agora, estando tão apaixonada por Gabriele, um amor impossível, mas que a tragava inexoravelmente. Sentiu-se cansada de lutar contra a insistência da outra. Queria se livrar logo daquela situação embaraçosa. Olhou para ela, um pouco fria, e disse:
- Tudo bem, combinamos depois. Mas quero lhe dizer que irá perder o seu tempo.
- Veremos. – Disse-lhe, lançando um olhar enigmático e repleto de promessas. Girou nos próprios calcanhares e foi-se, segura de si e de seu talento em desorganizar as coisas estáveis.
Distante dela, Amanda respirou aliviada. A mulher havia agitado seus sentidos, deixando-a nervosa. Ela não entendia bem o que estava acontecendo. Por uns momentos, desejou esbofetear a estranha até se acalmar. Mas não conseguia mover-se. Ela tinha conseguido deixá-la imobilizada, como se fosse vítima de um inseto hipnótico e sedutor.
- O que foi isso, meu Deus?
Afastou das sensações desordenadas que a invadiam e voltou-se ao trabalho, lentamente.
Quando encontrou-se com Rosana, no final do dia, tinha novidades para contar. Rosana escutou, fazendo gracinhas, e permaneceu com um sorriso maroto nos lábios.
- O que?
- Bem, só posso dizer que você se recupera rápido...- Concluiu.
Amanda enrijeceu o corpo e passou a mão nos cabelos. Sempre fazia isso quando estava nervosa.
- Não, você não entendeu a história...
- Ah, entendi perfeitamente. Você está em plena dança do acasalamento, Amanda. – Rosana estava se divertindo muito com aquilo tudo. Ou só tentando irritá-la?
Amanda se levantou da mesa, abruptamente, com raiva. Se estivessem em casa e não num barzinho, teria começado ali uma bela discussão.
- Aonde vai, Amanda? – Surpreendeu-se Rosana.
- Ao banheiro!
Agora Rosana estava pensando como ela era instável, volúvel e superficial, substituindo rapidamente o velho amor que não deu certo por outro, novinho em folha. Tinha tanta raiva às vezes de Rosana, da forma como ela julgava mal seus sentimentos...
Estava lavando as mãos, absorta em seus pensamentos endurecidos pela irritação, quando sentiu um leve toque em seu ombro. Olhou para a imagem no espelho e quase teve um enfarte instantâneo. Ficou sem fala e empalideceu.
- Não queria assustá-la, Amanda. – disse Gabriele. – Eu te vi entrar...
Amanda continuava sem ter o que dizer, dolorosamente adormecida, com as pernas bambas e o sangue fervendo. Sentiu o rosto aquecer-se repentinamente.
- Você está bem? – Quis saber, preocupada. Quis aproximar-se mais, porém viu que a outra se retraia instintivamente. Parou onde estava.
Aquilo era um fantasma que voltava para lhe perturbar o juízo, a única coisa que não precisava ver nunca mais em sua vida.
Gabriele estava constrangida, ela podia sentir isso. Ficou também. Mas não conseguia mover-se. Queria escapar dali.
- Eu gostaria que tivéssemos um tempo para conversarmos, para esclarecermos as coisas.... – disse Gabriele, tentando contornar o silêncio que de repente parecia preencher todo o ar que respiravam.
Amanda fez um gesto negativo com a cabeça.
- Eu não estou preparada para essa conversa, Gabriele.
Ela não sabia o que fazer com o próprio corpo e Gabriele parecia querer arrancar dela mais algumas palavras. Ela não poderia suportar mais nem um minuto ali, em sua companhia. Saiu dali, passando por ela, sem se despedir.
- Me desculpe, mas não dá. – disse, sem olhá-la.
Gabriele lançou um olhar triste e preocupado em sua direção, sem nada dizer.
Amanda voltou lívida para mesa e foi pegando a sua bolsa.
- O que foi, Amanda? – Rosana não deixava de se surpreender com as reações inesperadas de sua amiga.
- Gabriele está aqui! – Disse com a voz entre dentes, como se fosse se asfixiar.
Rosana passou os olhos pelo bar, procurando.
- Onde?
- Deixe sua curiosidade para depois. Eu vou embora! Você vem?
- Amanda! – Quis impedi-la, mas era tarde.
Ela foi sem olhar para trás, fugindo da possibilidade de ter Gabriele à sua frente. Foi quando Gabriele surgiu perto da mesa, lançando-lhe um olhar de reconhecimento.
- Rosana?
Ela levantou-se de forma hesitante. “Mais essa agora?”. Olhou para moça de cabelos negros, cortados em estilo chanel, à sua frente. Bem mais alta do que ela, bem mais magra, com um perfume discreto exalando, e postura determinada. Estava trajada de forma simples, mas adequadamente sofisticada. Amanda tinha razão. Gabriele era uma mulher muito atraente. Até demais, pôde repetir para si mesma. Mas não estava ali para dar continuidade aos lances de amores feitos para brochar. Tentou se concentrar no que era importante. E com certeza, naquela história, ela era mera coadjuvante.
Gabriele pediu para se sentar à sua mesa. Com certeza, a conversa seria curta. Se dependesse dela, pelo menos...Percebeu o olhar grave de Gabriele marcado pela preocupação – e talvez culpa -. Diante disso, tentou evitar a habitual hostilidade.
- Eu não sei o que dizer...não sabia que ela estava aqui. Nos encontramos por acaso – Foi-se desculpando.
Ali estava alguém com aquela familiar perturbação nos olhos. Rosana a olhou com seriedade.
- Gabriele, você percebe como tudo isso está começando a ficar inadequado?
Ela lhe lançou um olhar confuso.
- Como Amanda pode esquecer você se está sempre topando com ela? Sei que está querendo ser gentil ou sei lá o que, mas o fato é que assim você só atrapalha...
Gabriele franziu o cenho e apertou os olhos.
- Ai, meu Deus! – Murmurou impaciente. Rosana não estava acreditando. Gabriele estava mais envolvida do que poderia admitir a si mesma.
- Eu sinto a falta dela em minha vida. – Confessou em voz baixa. – É sobre isso que estamos falando. Ela foi a minha melhor amiga, a pessoa mais incrível que encontrei nos últimos anos. – A lágrima poderia rolar naquele momento, não fosse a interceptação de sua mão, que arrastou-a para fora da margem de seus olhos - Claro que não quero perdê-la...
Rosana estava estupefata. “Meu Deus!”.
- Eu estou confusa. Minha vida ficou repentinamente sem graça. Sinto dentro de mim um imenso vazio...fico me analisando, tentando entender o significado disso tudo. O que significa? – Ela lançou para ela um olhar... pedindo ajuda?
- Significa que você está precisando sair mais e fazer novos amigos. – Disse dura e secamente Rosana.
Gabriele a olhou novamente nos olhos. Estava repentinamente séria. Sabia que ela não gostava dela. Não tinha dúvidas disso desde a primeira vez que se falaram ao telefone, mas era da sua sinceridade que estava atrás. Além disso, quem melhor para lhe falar isso do que uma lésbica experiente, a melhor amiga da melhor amiga que já teve?
- É, talvez tenha razão.
- Gabriele, eu não sou sua amiga. Por que não vai buscar os conselhos de uma que possa dizer o que você quer ouvir? Ou marcar uma consulta com o seu terapeuta? Definitivamente, não sou a pessoa mais adequada para entender você. – Olhou fundo nos seus olhos e disse: - E nem pense procurar Amanda para falar sobre isso. Ela não vai entender a confusão de seus sentimentos...nem você está se entendendo. Não vou deixar que você a magoe....
Gabriele assentiu. Era verdade. Ela não sabia o que se passava com ela.
- Não quero magoar Amanda. É a última coisa que desejo. Estou tentando botar os meus sentimentos em ordem.
- Mas por que não tenta fazer isso bemmm distante dela?
Gabriele sabia que Rosana tinha razão. Não tinha como chegar até Amanda e ter essa conversa confusa, dolorosamente contraditória. Não sem pensar bem no que tudo aquilo significava.
Não sabia ao certo por que estava dizendo tudo aquilo a uma completa estranha...mas não podia se controlar. Estava com aquilo engasgado em sua garganta.
- Eu sempre me senti meio inadequada em minha frieza e contenção. Racionalizava demais meus sentimentos, tentava colocar tudo etiquetado e cautelosamente distante. Não sei como Amanda penetrou nesse mundo e fugiu a todas essas regras...na verdade, eu mesmo a chamei para dentro dele e não pedi que seguisse nenhuma regra. Foi uma surpresa quando percebi que estava extremamente à vontade com Amanda, sem pressa de descartá-la e usar meu tempo de maneira útil. Ela é uma pessoa com a qual você pode ser honesta sem temer crítica ou repreensões morais...É divertida, curiosa, tímida...
Rosana abriria a boca, surpresa, se não tivesse que driblar o próprio ciúme. Gabriele estava descrevendo a sua Amanda com tanta intensidade e paixão que lhe deixou momentaneamente sem fala.
- Até encontrá-la, acho que nem percebia que era tão solitária, vivendo em meu mundo artificial...eu, que vivia cercada de tantas pessoas o tempo todo...
- São os seus amigos, ali, olhando para a gente?
Gabriele olhou na direção de sua mesa, um pouco distante.
- Sim...
- Por que não volta para onde eles estão?
Gabriele a encarou. Realmente, o que estava fazendo ali, conversando com uma pessoa que não lhe dava o menor crédito?
- Por que me trata assim?
- Olha, por nada. Eu preciso ir até onde Amanda está, para saber como ela ficou depois de ter visto você...com certeza, terei mais uma madrugada triunfal. – Suspirou. – Então, o que pretende fazer?
- Tudo bem – disse, fazendo um movimento para levantar-se. – Eu só posso agradecer por me escutar.
Rosana balançou a cabeça. Sabia que ia se arrepender da sua generosidade inesperada.
- Tudo bem, fique mais um pouco.
Gabriele parou de se levantar.
- Eu preciso dizer que conheço Amanda desde os 14 anos. Fui a sua primeira namorada e agora sou a sua melhor amiga. Mais que isso, eu sou a coisa mais próxima que ela pode chamar de família. Posso lhe dizer que sei tudo sobre ela, assim como ela sabe tudo sobre mim. Somos como irmãs. Brigamos muito, mas nos amamos muito. É um casamento sem sexo. – Sorriu, enternecida, lembrando-se que era verdade. E continuou, fitando uma Gabriele quieta. – Eu acompanhei durante todos esses anos todos os seus casos, todas as suas decepções, todas aquelas tentativas de relacionamento com aquelas idiotas por quem ela se apaixonou um dia. Ela tem uma idéia fixa no amor. Não deveria levar esse assunto tão à sério.
- Por que não? – Gabriele estava curiosa.
- E você não sabe? Não pensa como eu? – Rosana sorriu, irônica – O amor atrapalha o raciocínio, faz a gente perder o rumo, desfocar dos objetivos. O amor dói e não há remédio que passe essa dor.
Gabriele suspirou.
- Então é isso? Você se tornou amarga porque nunca esqueceu Amanda?
Rosana quase se enfureceu, crispou as mãos sobre a mesa, e olhou diretamente para Gabriele, faiscando.
- O que sinto por Amanda não está em questão. Mas o que você sente. Não estamos demarcando território como se fôssemos dois cães no cio. Eu amo Amanda, sempre amarei, mas o meu amor não tem mais o mesmo significado. Eu já deixei de esperá-la, deixei que ela fosse em busca de seu amor perfeito, a sua alma gêmea. Mas você, definitivamente, não é essa pessoa que ela busca.
Gabriele quis saber por quê.
- Você nunca conseguirá fazê-la feliz. Está presa demais ao seu mundo de aparências, de satisfações, de ego superinflados...a esconderá dentro de um dos compartimentos de sua vida atribulada. Você a usará, como outras já a usaram, depois se encherá de tédio e a descartará. Ela já sofreu demais por isso. E eu não deixarei que a faça sofrer.
Gabriele estava atônita. Respirou fundo. Seus olhos verdes faiscavam quando finalmente falou:
- Não sei por que pensa isso de mim. Você tem muitas idéias a meu respeito e nem me conhece, nem sabe o que penso, como ajo. Na verdade, você está apenas como medo e eu não a culpo. Não pretendo começar um relacionamento com Amanda. Eu não sei por que pensa isso. Mas se eu desejasse, não seria essa pessoa que você descreve, tão egoísta, mesquinha e egocêntrica. Se eu amasse Amanda ao ponto de querer ter com ela um relacionamento, não a esconderia de nada. – Gabriele pegou sua bolsa e se preparou para sair dali com altivez - Você não faz a mínima idéia do que eu faria para fazer a pessoa que eu amo feliz.
- Ah, tudo bem, Gabriele. Mas quando você se decidir sobre o que quer, talvez ela não esteja mais lhe esperando, chorosa, sofrendo pelos cantos...
Gabriele esperou que ela dissesse.
- Há muitas pessoas esperando que ela desencante. Sempre há muitas pessoas esperando por ela.
Gabriele saiu da sua mesa, rapidamente, avançando em direção à sua mesa. Viu que ela não se demorou e se despediu. Quieta, em sua mesa, Rosana se arrependeu da metade das coisas que disse, mas julgou que era o melhor.



A Dança Vazia - Capítulo 7


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Capítulo 1: Amanda vive uma experiência radical
(por hanna-k , adicionado em 7 de Janeiro de 2005)


Quarta-feira, 13h, hora do almoço. O barulho em volta se tornou irrelevante. Pessoas iam e vinham. Sacolas na mão, gente falando, sorrindo demais, o som ambiente. Ruídos. Aquilo não chegava a incomodar. As pessoas se acostumam a tudo na vida. Naquela hora, um cantor acompanhado de um violonista tentava entreter a platéia dispersa. Platéia? Ninguém prestava atenção. Aquilo era um shopping, não uma casa de shows. Por que será que insistiam nesses pequenos espetáculos deprimentes? É que, de repente, alguém poderia estar sozinho e apreciar. Ah, não aquela turma ali, animada, cheia de coisas para contar, quase que alheias ao que acontecia em torno. Jovens, solteiras, independentes e muito ansiosas para revelar os últimos detalhes de suas vidas umas às outras. Em sua mesa, muitos chopes, carteiras de cigarro, pratos recém-consumidos, o que sobrou do almoço. Risadas.
Rosana estava particularmente interessada em obter a cumplicidade de Daniela e Vitória, namoradas. Elas se limitavam a rir.
- Então, você topa com a Gabriele numa noite e no dia seguinte decide que é o momento certo para iniciar uma relação?
Amanda balançou a cabeça.
- Primeiro, não foi no dia seguinte. E segundo, eu não definiria isso que eu estou vivendo como uma relação...
- Então, o que é?
- Uma experiência.
As mulheres fizeram uma pequena algazarra. O álcool estava começando a fazer efeito. Mais divertida ainda era a história. Amanda estava contando como percebeu que a melhor maneira de esquecer Gabriele seria se render a Paola, a insistente sedutora que começou a esperá-la do lado de fora do trabalho.
Rendição era uma palavra forte. Ela havia abraçado aquela oportunidade com disciplina, quase no abandono de seus próprios interesses. Se era para ser assim, que fosse. Tinha que arrancar Gabriele de sua cabeça. Paola era a pessoa certa. Estava tão convicta de que iria conquistá-la, mesmo contra sua vontade, que empregava energia suficiente para mover uma montanha. Nada de flores, bombons, mensagens no telefone. Paola apostava no contato direto. E era muito eficaz no que fazia. Amanda riu.
- Nunca conheci alguém tão autoconfiante. – Disse.
Daniele e Vitória conheciam Paola do circuito rave. Ela organizava uma das festas mais badaladas da cidade.
- Como é o nome mesmo da festa? – Perguntou Rosana, levemente crítica.
- Alguma coisa como “macaco louco”...Não sei. – Bateu de ombros Amanda.
- Quem botaria um nome desses numa festa? – Desdenhou Rosana.
- Não é isso não, heim...é Crazy Cat – Corrigiu Vitória – E é muito bacana lá.
- Ah, sei...
Rosana repudiava raves, boates com programação eletrônica. O máximo que conseguia suportar eram as baladas suaves, do tipo que se dança de rosto coladinho.
Amanda contou que Paola tinha feito marcação cerrada. Convites para almoço, jantar, boates. Não havia aceitado nenhum. Depois, refletindo melhor, pensou: por que não tentar? Paola manteria sua mente ocupada demais para pensar em Gabriele.
- E a estratégia adiantou? – quis saber Daniela.
Amanda não precisava falar nada. Sua cara já dizia tudo.
- Na verdade, ainda não, mas é cedo...ainda penso nela todos os dias. O primeiro pensamento da manhã, ao abrir os olhos, o último ao dormir...e não contente, ela ainda me atormenta os sonhos.
Rosana apartou a conversa, ainda bebendo um gole de chope. Quis dar o seu veredito.
- Isso só reforça a minha teoria sobre os loucos insatisfeitos. Gente como você, Amanda, não sabe o que quer da vida. Gabriele não te quer e você fica roendo os ossos para tê-la. Paola te adora e você a rejeita.
- Ah, Rosana, isso não tem nada a ver, amiga – repreendeu Vitória. – Não se escolhe quem vai amar. As coisas seriam mais fáceis se fossem assim...Eu, por exemplo, tive a maior sorte – Disse olhando para Daniela. A paixão entre as duas transpirou. Causou um certo mal-estar em Amanda. Rosana olhou as duas com ironia. “Humm, humm”, murmurou.
- Entretanto, eu só ouço Amanda reclamar. Ela nem está se divertindo...Não é, Amanda? – Rosana não perderia essa chance de confrontá-la.
Todos os olhos se voltaram para ela, esperando uma resposta. Amanda desistiu de fugir da conversa.
- É que é diversão demais, minha gente! Estamos saindo há duas semanas e ainda não tive sossego. Todo final de semana ela inventa uma viagem...e não é uma viagem qualquer, não. É aventura radical, tipo fazer rapel na serra, percorrer trilhas esquecidas no meio do mato, andar de bicicleta de uma cidade a outra. Gente, eu não agüento isso! É emoção demais...Estou me sentindo uma Fernanda Keller.
Todas desataram a rir. Risos demais. Até Amanda, com cara de vítima, estava rindo também.
- Então, além de te levar para passear, ela já conseguiu algo a mais? – Perguntou maliciosamente Daniela. Vitória, a seu lado, a cutucou, repreendendo. – O que é, Vitória...não tem por que ela esconder da gente.
Amanda hesitou um pouco antes de falar. Por que contaria? Nunca foi de contar intimidades. Rosana a olhou com ironia. Já sabia a resposta.
- Bem, beijos, amassos e coisas do gênero. – Disfarçou.
As garotas riram, sem acreditar.
- A Paola? Ela não se contenta com pouco não, Amanda. A gente sabe dos lances dela. São bem mais profundos do que isso que você está contando.
Amanda olhou para Rosana, pedindo ajuda. Rosana sorriu para ela, dizendo para ela se virar sozinha. Suspiro. Sim, claro, uma confissão.
- Vocês já sabem que eu não sou mais virgem... – disse baixinho.
Canetas de chope bateram no ar, mais risos. Amanda queria afundar na cadeira.
- Vamos mudar de assunto...- Recomendou, constrangida.
- Amanda, você não existe... Por que tem vergonha de falar sobre essas coisas tão naturais. Somos amigas, esqueceu?
O que ela não poderia falar para Daniela e Vitória era que o sexo com Paola era como fazer ginástica acrobática de tão intenso e exaustivo. Não tinha conseguido encontrar muito sentido nessa parte do relacionamento. Era como se o corpo reagisse ao toque, nada suave, sempre urgente, mas a mente, abstraída, buscasse o refúgio da memória. Era com Gabriele que gostaria de estar ali.
Paola sabia ser envolvente, conquistar sua excitação, levá-la às alturas. Entretanto, depois, quando as respirações se acalmavam e o corpo amolecia, não sabia exatamente o que restava de todas aquelas emoções. Sentia-se tirando um peso das costas e colocando outro. Um pouco de culpa, talvez. Tentava tirar de sua mente a idéia de que estava traindo Gabriele, por mais que soubesse que tal sentimento era uma espécie de alienação. Mas como poderia evitar?
Não estava enganando Paola. Ela sabia de seus sentimentos e tinha encarado a missão de fazê-la esquecer Gabriele com uma certa arrogância. Claro que a faria esquecer, teria dito sorrindo. Confiança, eis a palavra predileta de Paola. Amanda chegava a acreditar nessa promessa. Poderia se apaixonar por Paola, esquecer Gabriele, viver uma outra história. Talvez por isso, por acreditar tanto nessa possibilidade, havia se entregado à experiência de sair com Paola com disciplina. De certa forma, dava resultados. Nunca se sentiu tão ocupada e exaurida fisicamente com alguém. Mas também era reconfortante. “Tudo bem, vou deixar que você me use. Estarei aproveitando bem”, gracejou Paola, com uma ponta de sarcasmo. Com ela, era tudo ou nada. Não tinha esse espectro romântico rondando, promessas de futuro ou qualquer ameaça de um plano conjunto. A vida de Paola era bastante pragmática, sem complicação. “Deixa rolar” talvez fosse a sua frase preferida, embora não a dissesse com freqüência.
- Então, como é ela? – perguntou Daniela, curiosa.
Amanda sorriu, querendo zombar da ansiedade do casal. Elas pareciam, às vezes, ser tão adolescentes...
- Quanta curiosidade, gente! Não tem nada de excepcional.
- Amanda, que é isso? – Contestou Vitória – Paola é a encarnação da Pink!
- Pink? – Rosana cortou a conversa com curiosidade e totalmente por fora.
- A cantora. Ela faz o estilo dela. Aquele corpão atlético, aquelas roupas! E as tatuagens? Já conheceu todos os piercings dela?...Puxa, ela é demais, Amanda. Segura essa mulher!
Amanda revirou os olhos controlando a impaciência que irrompia.
- Obrigada pelo apoio, meninas, mas eu ainda não estou apaixonada.
As duas murcharam em um “ah” uníssono.
- Bem, mas ainda é cedo – Disse Vitória. – Quando você estiver mais envolvida, quer dizer, mais do que está, podemos até cruzar as nossas turmas e vê no que dá, né?
Amanda sorriu. Rosana torceu o nariz.
- Garotas, acho que as nossas turmas são diferentes demais. É como água e vinho. Eu não sei se será uma boa idéia – tentou considerar Amanda - Temos interesses divergentes. Não suporto aquele som dance o tempo todo. Fora passar as noites em claro jogando conversa fora. É uma coisa alucinada. Vocês não iam gostar... – As meninas lançaram um olhar de “sim, íamos”. Amanda retirou o que ia dizer. Bateu de ombros, vencida. – Tudo bem, vou ver o que posso fazer, ok?
A conversa encerrou por ali. Indo em direção ao carro, acompanhada por Rosana, Amanda ia refletindo sobre o que significava aquilo tudo, aquela admiração, aquela ansiedade em torno de Paola. Bem, sabia que ela era uma empresária bem-sucedida, proprietária de uma rede de lojas que vendia “estilo”, como ela própria havia definido. As lojas se espalhavam por parte do Nordeste. Freqüentemente, ela viajava para acompanhar o negócio. Muitas vezes, preferia ir de carro próprio, acompanhada por gente da sua equipe, em vez de ir de avião, que seria mais prático. Ela havia confessado que era por causa da pulsação, do sangue da geração beatinik correndo em suas veias, embora estivesse distante dos anos 70 e não compartilhasse de todos os aspectos daquele universo alternativo. Mas adorava estradas e a sensação de liberdade que poderia obter viajando. Tinha uma moto enorme, reclinada, de pneus largos e baixos, que ela denominava de “águia”. A moto tinha um apelo igualmente sedutor. Paola usava a moto para lhe impressionar. E realmente, ficava irresistível em cima dela. “Quer dar uma volta?”, perguntou um dia, quando lhe esperou no final do expediente. Aquela idéia assustou e atraiu Amanda na mesma proporção. “Vamos! Prometo que será um passeio inesquecível”, disse Paola, sorrindo, pegando em sua mão e colocando, na seqüência, o capacete em sua cabeça. Andar de moto com Paola realmente foi inesquecível. Ela corria demais, ziguezagueando por entre os carros, fazendo malabarismos em duas rodas, assustando Amanda, que fechando os olhos, apertava a parte do corpo de Paola que segurava para não voar para trás. Nem sabia quanto tempo aquela curta viagem demorou. Estava assustada. Pensou que ia morrer. Detestava montanha russa, lugares perigosos...
A moto parou em um ponto da cidade, próximo ao rio, onde as luzes da ponte tremulavam sobre as águas e árvores corpulentas inclinavam-se sobre as margens. Era um lugar particularmente lindo e isolado. Ela nunca tinha estado ali. “Então, gostou?”. Paola perguntou, mas já sabia da resposta. Amanda estava trêmula. “Não era o que eu estava esperando”, disse, recuperando o fôlego, tirando o capacete fora. Por dentro queria gritar: “Sua maluca, quase me matou de medo!”. Paola sorriu de sua reação. “Eu nunca vou fazer apenas o que você está esperando, Amanda”, respondeu, roubando-lhe um beijo. Os seus lábios eram experientes, ágeis, assim como suas mãos. Amanda afastou-se, balbuciando um não. “Não gostou do beijo”, perguntou cinicamente Paola, encostando-se na moto. Amanda olhou a paisagem. Gostaria de estar ali com outra pessoa, era isso que queria. Paola aproximou-se dela e a abraçou por trás, beijando o seu pescoço. Amanda retraiu-se, experimentando surpresa e prazer. “Preciso lhe dizer uma coisa, Paola”, quis parar para conversar. Paola não queria interromper o fluxo de suas próprias sensações. “Hummm?”, indagou sem abrir a boca. “Eu estou apaixonada por outra pessoa”, revelou. Paola não lhe deu atenção. Isso não significava nada. Absolutamente, um mero detalhe. Amanda continuou falando, tentando afastar-se dela. “Tudo bem, para você não é importante, mas para mim é essencial...não vou me envolver com você. Não quero, não estou preparada”, disse-lhe, tentando ficar distante daqueles lábios insistentes. Paola sorriu para ela. “Quem disse que quero envolvimento sério?”, perguntou. “Estamos nos conhecendo, refinando nosso contato inicial. Não é muito cedo para se falar de sentimentos? Não me lembro de ter tocado nesse assunto”. Ah, perfeito. Agora ela estava no controle da situação?
Amanda cruzou os braços e desviou o rosto. “Tudo bem, você não quer envolvimento e eu também não. Nem sei se quero sair com você...”. Paola segurou seu rosto e olhou fundo nos seus olhos. Não estava mais sorrindo. “Vamos falar sério, então. Você ama alguém que não está aqui. Mas eu estou, sou a sua opção única neste momento. Não precisa se apaixonar por mim. Não estou apaixonada também. Vamos só curtir o clima, deixar rolar, depois a gente interpreta, analisa o que passou e vê no que vai dar...Tudo bem para você? Para mim parece uma ótima solução”. Paola e a sua praticidade. Amanda suspirou. “Pode ser, Paola, mas por hoje, o clima já deu onde tinha que dar. Me leva até o carro, por favor?”. Paola não discutiu mais a questão. Colocou o capacete de volta, fez uma viagem tranqüila e depois de Amanda ter saltado da moto, tirou o capacete por uns segundos. “Nem pense que isso é uma despedida. A gente se vê”, avisou. E era uma promessa. Nos dias que se seguiram, quase sempre ela ficava de plantão do outro lado da rua, no final do expediente, apenas olhando-a e sorrindo. Amanda se perguntava se ela não tinha o que fazer nas suas empresas, mas depois compreendeu que Paola valorizava a conquista. Tinha necessidade de superar obstáculos. Por outro lado, colocar-se tão disponível poderia tornar esse jogo rapidamente sem graça e, portanto, de curta duração. Atravessou a rua e conversou com ela. “Tudo bem, você venceu. Eu saio com você, mas com a condição de que você pare de fazer plantão na porta do meu trabalho. Daqui a pouco vou ter que dar explicações ao Túlio”, disse-lhe, sorrindo. Paola também sorriu. “Não precisa. O Túlio é gay”, ela sorriu mais ainda com a cara de surpresa de Amanda.
- Em que você está pensando, Amanda? Você me deixou falando feito uma idiota e quando olhei você estava com essa cara de boba, com a cabeça nas nuvens. – Rosana estava olhando para ela com a expressão zangada – Detesto quando você fica assim, alheada.
- Ah, Rosana, desculpa, estava pensando na Paola.
A outra sorriu como se confirmasse as suas suspeitas.
- Não é nada disso que você está pensando...Pode desfazer essa cara.
Rosana botou o braço em torno de Amanda e apertou.
- Não precisa ficar com vergonha de se apaixonar outra vez, Amanda.
Amanda tirou de si o braço de Rosana e ficou de frente para ela, confrontando o seu sorriso com uma cara séria demais.
- Rosana, podemos mentir para nossas amigas sobre o que está se passando comigo, mas não podemos nos enganar, não é?
Rosana sabia que era verdade. Não existia paixão naquele relacionamento. Talvez frustração, desespero, a inapelável vontade de escapar...
- Tá, Amanda, já entendi.
Amanda hesitou por uns segundos e depois falou.
- A Gabriele me ligou há alguns dias.
- O que ela queria com você – Perguntou asperamente.
- Ela me disse que ia viajar, passar uns dias fora a trabalho. Ela disse que quando voltar vai me procurar para conversarmos.
Rosana olhou Amanda. Tentava perceber o que ela estaria pensando.
- E daí?
- Daí que eu não sei se posso ficar frente a frente com a Gabriele... Eu fico sem ter o que dizer, com vergonha da cena que eu fiz, das coisas que agora ela sabe sobre mim. E ela me rejeitou! Ela não gosta de mim como eu gostaria. Quer apenas a minha amizade e isso eu não tenho condições de dar para ela agora. – Amanda estava agitada e falava rápido, nervosamente.
- Então diga isso para ela, ora!
- Eu já disse, mas ela parece querer mais esclarecimentos sobre isso, eu não sei...
- Mas eu sei...Ela bagunçar ainda mais sua cabeça. Mas eu vou enfiar uma chave de fenda na sua cabeça e girar os parafusos que estão soltos. Talvez só assim você tenha um pouco mais de juízo.
Amanda sorriu da metáfora inesperada.
- Ela deve voltar na próxima semana.
- Quando ela te chamar para conversar, eu vou junto!
Rosana estava brava. Amanda a abraçou rapidamente.
- Você não existe. Mas não posso deixar que você me proteja para sempre, que resolva os meus problemas, que se envolva em todos os aspectos da minha vida. Tem coisas que eu mesma posso resolver. Não somos mais crianças.
- Ah, então trate de agir como adulta de vez em quando, tá bom?
- Tá, zangadinha. Então vamos mudar de assunto. Estou cansada de falar em Gabriele...
- Você manda!
Amanda lançou um olhar de súplica para Rosana.
- Você vai comigo a festa da Paola? Não vou suportar aquele baticum a noite toda sem ter com quem conversar direito.
- Nem pensar! Não vou segurar vela de jeito nenhum. Além disso, a sua Paola não vai desgrudar de você.
- Pelo contrário, ela vai estar trabalhando. A festa é dela, esqueceu? E vou ficar sozinha, com os amigos dela, uns pirados que usam roupa colorida, piercing da língua, e que falam as coisas lisérgicas que já ouvi. Por favor, Rosana!
- O que você me pede é demais, Amanda, demais mesmo! Vou pensar.
- Mas não pensa muito...a festa é daqui a uma semana.
- Eu te ligo.
- Eu te arranjo companhia.
- Naquela galera lá, nem pensar...gosto de garotas tranqüilinhas, voz e violão, esqueceu?
Elas se despediram com um abraço apertado. Amanda estava em plena contagem regressiva.


A Dança Vazia - Capítulo 8


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Capítulo 1: Quem dança com quem?
(por hanna-k , adicionado em 11 de Janeiro de 2005)


O ambiente estava escurecido. Tochas indicavam o caminho até a entrada e o som estalava em algum lugar ao longe. Luzes tremulavam por debaixo da tenda, ricocheteando em tecidos coloridos. Garotas malabares cruzavam a pista, enquanto rapazes cuspiam fogo. Tudo parecia lembrar uma cena anacrônica, embora o ruído que marretava meio à escuridão trouxesse um ar de extrema urbanidade ao lugar.
Amanda cruzou a entrada sozinha. Garotas, que pareciam modelos de alguma agência local, dividiam o espaço com drag queens coloridas e muito altas. As moças colocavam pulseiras que reagiam à luz negra e as drags davam as boas-vindas sorrindo em sua afetação.
Rosana resolveu não ir à festa, mas Daniela e Vitória prometeram estar lá e lhe fazer companhia. Não conseguia se sentir à vontade com todas aquelas personagens se sacolejando na pista sob o domínio daquele som agitado e hipnótico. Minutos depois de chegar, ela não conseguiu reconhecer ninguém, mas aos poucos foi se acostumando com o ambiente de pouca luz e ao espaço disputado por centenas de pessoas. No ponto alto, a estimativa de Paola era reunir cerca de 3 a 4 mil pessoas. Ainda era cedo, mas a aglomeração era intensa. A festa tinha uma infra-estrutura invejável, considerando-se estar no meio do nada. Quiosques de comida, bebida, roupas e acessórios, além de tendas com almofadas, iluminadas por lanternas à querosene e tendas enigmáticas, rolando outro tipo de som, onde pessoas mais quietas se sentavam para conversar, namorar ou fumar.
De repente, Amanda viu as meninas. Balançou a mão no ar. Elas atravessaram a pista para falar com ela.
- Olá, Amanda! Você já viu Paola?
Amanda olhou em torno, procurando-a, mas desistiu mais uma vez. Tinha muita gente ali, o ambiente estava mal iluminado e o burburinho misturado à música obrigava que conversassem muito alto, encostando os rostos uns nos outros. Amanda não estava muito a fim de dançar. Permaneceu à margem da pista, tentando se animar na conversa. Na verdade, não se arrependia de ter vindo, mas estava se sentindo deslocada, fora de seu ambiente natural.
- Aqui está o máximo, né, Amanda? – perguntou Daniela, ansiosa pela sua confirmação.
Amanda bateu a cabeça afirmativamente. De longe, viu a turma de amigos descolados de Paola. Eles estavam tão entretidos no ritmo da música, aninhados perto das caixas de som, que não sentiu vontade de ir até lá, dizer oi. Seria ridículo tentar ser social numa rave.
- Está gostando? – perguntou Vitória, colocando a mão em torno da cintura de Daniela. A outra encostou sua cabeça no ombro da namorada.
Amanda sorriu, desanimada.
- Estou me sentindo como um peixe fora d’água...acho que é por falta de hábito. Não saio muito para dançar, acho que nem sei mais...
- Bobagem, Amanda. Essas festas não são para dançar, mas para viajar na música. – Brincou Vitória. – A Dani tem uma amiga que só dança com as mãos. Quer tentar? Você pode começar a se mexer por aí...hahaha.
Amanda deu uma risadinha. Embora a Rosana não estivesse ali para impregnar aquela saída com o seu mau-humor irônico, as garotas estavam diminuindo a sensação de inadequação experimentada por ela.
Foi quando viu Paola. Ela estava usando um top preto estilizado que realçavam os seios, deixavam parte de sua barriga exposta, braços nus e ombros à mostra. O conjunto era complementado por uma calça de couro, atravessada por tiras atadas às pernas...Foi quando sentiu por que a ebulição química dos sentidos ainda provocava tanto embaraços e perguntas sem respostas. Vendo Paola aproximar-se com seus passos felinos e firmes, como se estivesse seguindo o ritmo da música de baixos reforçados e vertiginosos, sentiu o corpo estremecer e ser atravessado por uma onda vertiginosa de prazer. Sim, ela estava linda, irresistível. E era toda sua. Esqueceu, naquele segundo, qualquer outra imagem. A dor sofrida até aquele momento pareceu desaparecer diluída na excitação. Paola sorriu para ela com sua boca voluptuosa. Sentiu sua própria abrir para aspirar mais ar. Sem nada dizer, ela lhe tomou nos braços e apertou-a de encontro a si, num abraço sensual. Sua boca sussurrou bem perto: “Senti sua falta”. Amanda então passou os braços em torno de seu pescoço e a beijou, esquecida dos olhares em volta, do barulho, das conseqüências. “Humm”, murmurou Paola, respirando o perfume exalado pelo pescoço de Amanda. “Ótima recepção”. Amanda poderia parar e pensar que inconscientemente estava rendendo-se ao fascínio de Paola, deixando-se levar pela voragem de um apelo selvagem do próprio corpo. Talvez. Era bom sentir sem pensar. Alegrava-se intimamente por não estar preocupada com que os outros diriam. Ao lado de Paola, sentia-se protegida dos comentários. Estava tomada por uma grande excitação por estar ao lado dela, por ser sua namorada, e por todos saberem disso. “Somos marionetes no baile da vida”, teria escrito Jack London. Nem sabia por que estava se lembrando disso agora. É estranho o que se arranca da memória nos momentos mais inesperados. Mas não podia negar que estava se sentindo arrebatada pela alta voltagem da festa e, agarrada ao corpo de Paola, sentia a pulsação da música através dela. Começaram a dançar, naturalmente. Um desejo brotou naquele friccionar ritmado de corpos. Poderiam ter abandonado a festa ali, mas Paola era disciplinada. “Mais tarde, minha gatinha”, disse, olhando-a com um inconfessável desejo. A coreografia dos corpos continuou, quente, mas de forma controlada. Paola sabia esperar. Amanda deixou-se conduzir por aquela sensação de espera. As mãos de Paola passeavam por seu corpo. A sua boca procurava a sua. A língua úmida poderia penetrar até em seus pensamentos. Entregara-se. E naquele momento, não havia culpa. Paola estava ali, perto de si, tocando-a, dançando com ela, hipnotizando-a. Era bom sentir o seu hálito, o seu calor, o seu desejo. Sentia-se estranhamente alheada. Não conseguia distinguir muito bem o que acontecia, a não ser que estava ali, abraçada a ela e sentindo-se bem com isso. “Para quem não queria vir, você está bem animadinha”, comentou Paola sorrindo para ela. Amanda também sorriu. Estava inexplicavelmente feliz. “Mudei de idéia”, disse, tocando suas costas. Adorava tocar Paola. Seus músculos rígidos, o caminho que cada fibra percorria. Não sabia definir a sua volúpia. Não era repentina, pois Paola tratou de suscitá-la todos os dias desde que começaram a sair juntas. Naquela noite, porém, seu corpo havia se incendiado, sem saber o por quê.
Nem mesmo era assaltada por dúvidas e temores. Não pensava, como antigamente, “como me sentirei amanhã depois que a ficha cair?”. Nem se arrependia por ter, explicitamente, beijado outra mulher meio a tanta gente estranha, por ter se exposto sem pensar se teria alguém conhecido, se seria objeto de comentários depois. Naquele momento, sentia-se apenas atendendo a um chamado urgente do desejo.
Paola desgrudou-se dela e beijou levemente seus lábios, sussurrando um rouco “Volto já”. Estava indo verificar o desenrolar da festa em outro lugar. Amanda sentiu voltar a música, os ruídos, os olhares. Ficou um pouco aturdida. Daniela e Vitória aproximaram-se, excitadas e fingindo surpresa.
- Amanda! Uau, garota, vocês estavam demais!
Ainda fora do ar, Amanda tentou se situar. Olhou as meninas, procurando palavras. Elas lhe lançavam olhares de admiração, quase pulavam à sua volta, fazendo comentários sobre o espetáculo inapelavelmente erótico que haviam produzido minutos atrás. Era o velho festim de corpos que Amanda conhecia bem, só que antes, reservado a ambientes bem mais privados.
- E você disse que era tímida... – Comentou Daniele, divertindo-se.
- Rosana vai se morder toda por ter perdido! – Brincou Vitória.
Elas não paravam de falar, eufóricas. Amanda não estava ouvindo nada do que elas diziam. Um leve arrependimento a assaltava. Bem, mas não adiantava chorar sobre o leite derramado. Um dia teria que sair do armário e que fosse com alguém publicamente assumida como era Paola, tão autêntica e orgulhosa de si mesma que admitia isso sem ressalvas. Não tinha medo da opinião de outras pessoas. Até desdenhava de suas idéias medíocres sobre a orientação sexual. Por que temeria beijar uma mulher em público? Jamais aceitaria ter que se esconder num gueto apenas para manifestar plenamente seu afeto por uma pessoa do mesmo sexo. E suas festas eram assim, descoladas, livres de regras, para pessoas que compartilhavam tais princípios.
As pessoas olhavam Paola num misto de admiração e despeito. Quase se afastavam do meio para que ela passasse livremente. Para essas pessoas, Paola era alguém estranhamente emancipada, independente, indomável e livre das convenções. Dona do próprio destino. Amanda tinha aprendido a respeitá-la, mas admitia não saber muito sobre ela, a não ser o que os outros contavam meio a fantasias e fragmentos. Paola não gostava muito de contar sobre sua vida, sobre seus antigos relacionamentos. O passado era uma página virada. Amanda tinha dificuldades com isso. Ao contrário da outra, era acostumada a remexer nas velhas gavetas, a rememorar episódios, fazer longas interpretações sobre fatos que se perderam no esquecimento, apenas pelo prazer de lhes dar novo significado. Era difícil não obter respostas a perguntas simples como “quem foi sua primeira namorada?” ou saber quem de fato ela amou um dia. Difícil saber onde está a família de Paola, se tem irmãos, se algum dia foi feliz. Paola parecia viver num mundo onde somente o hoje e o amanhã fazem sentido.
Amanda viu Paola sorrir para ela do outro lado da pista. Sentiu um calor aquecer suas entranhas. Sabia que, naquele dia, o sexo poderia ter outro sentido. Poderia tocar não mais o corpo simplesmente, mas compor uma canção. Sorriu de volta, lançando um beijo por entre os dedos colados nos lábios. Paola continuava distante, acompanhando a mudança de DJ’s. Ou a estava evitando? Amanda queria estar colada ao seu corpo, mas não podia pedir que se distraísse mais naquela noite. Sabia que a teria em seus braços, depois que tudo terminasse. E por isso, antes que a madrugada terminasse e o dia dispersasse os últimos remanescentes da festa, Amanda se despediu, com um beijo demorado e um abraço delicado. “Vou esperar por você. Estarei em casa”, disse, Paola lhe lançou um olhar repleto de desejo e suspirou. “Mas hoje dormirei em casa. Tudo deve terminar depois das 10h ou mais. Com certeza, estarei um caco... e você não vai me deixar dormir”, sorriu. “Que tal depois que tiver descansado? Eu prometo que você não vai se arrepender por ter me esperado”. Amanda concordou. Hesitou em deixá-la, mas estava cansada e queria dormir.
Engraçado como se vivem mil vidas e papéis em uma mesma existência. Ainda amava Gabriele, pensava nela, chorava por ela, sentia sua falta, remoia as histórias que passaram juntas e ansiava por saber tudo a seu respeito. Não sabia se iria se esquecer dela facilmente, mas naquela noite flagrou-se excitada por Paola, desejando-a, querendo prosseguir com ela. Estava sendo volúvel, como pensava Rosana, ou apenas reagindo, esquecendo Gabriele, o seu sonho de amor perfeito? Talvez apenas sendo humana?
Paola não acreditava na monogamia, em valores como fidelidade, concessões em nome do amor. Ela não se submeteria a ninguém. Se sentisse atração por outra pessoa, não iria parar para averiguar a natureza dos sentimentos ou pensar nas conseqüências. Apenas seguiria os próprios instintos. Isso, ela não escondia absolutamente. Mas, para não magoar, não ostentava essa faceta abertamente. Amanda sabia que ela mantinha mil rolos nas cidades em que tinha lojas e até mesmo ali, talvez estivessem uma ou mais mulheres com quem se encontrava regularmente. Quem era ela para pedir que parasse com tudo e fosse exclusivamente sua? Sabia a resposta: não tinha tanta influência assim, mesmo sendo, no momento, a pessoa com quem ela gostaria de manter um relacionamento. Amanda nem mesmo sabia quanto tempo demoraria esse envolvimento. Paola era uma confessa apaixonada pelo ato de conquistar, de seduzir e não se preocupava propriamente dito com a manutenção de tais sentimentos. O próximo passo, depois de passar a novidade, poderia ser o tédio e o conseqüente descarte.
Amanda saiu da festa, deixando o rastro da música desaparecer e entrou no carro com a sensação absoluta de que não deveria se entregar mais uma vez e se apaixonar, não se isso poderia significar mais sofrimento. “Eu sou uma burra, burra!”, disse, batendo o punho na direção. A caminho de casa, refletiu como sofrer de amor tinha sido uma constante em sua vida. E sofrer mais uma vez parecia inevitável também com Paola, uma cética confessa. Ela era uma das que acreditava naquelas teorias sobre o amor ser resultado de uma conjunção de fatores químicos, associados a outros, que a antropologia poderia descrever melhor. O que ela faria?
Rosana tinha uma sugestão melhor.
- Fica na sua.
Amanda a olhou com desânimo.
- Aproveita, curte e parte para outra quando não der muito certo. Não se entrega de cara para depois ficar chorando. Vê se aprende.
Estavam comendo um sanduíche e olhando o movimento na praça de alimentação, local preferido por ambas para um encontro rápido depois do trabalho.
- Para você é muito fácil falar. Quase nunca se apaixona, tem uma rocha no lugar do coração...
Rosana parou de morder o sanduíche e lançou para ela um olhar de repreensão.
- Desculpa... – Disse a ela. – Não quero distribuir a minha chateação. Que culpa eu tenho de ser tão confusa?
- Toda a culpa do mundo... – Debochou Rosana. – Bem, eu nunca te conheci sem confusão de sentimentos, sem dúvidas, sem estar choramingando por alguém. Isso me torna muito escolada a seu respeito.
Amanda não sorriu. Em vez disso, olhou fixamente para Rosana.
- Isso não me responde o que quero saber. Você namoraria alguém para esquecer outra pessoa?
Rosana parou de morder o sanduíche e respondeu olhando também nos olhos de Amanda.
- Você deveria ter feito essa pergunta a si mesma dois meses atrás.
- Você não respondeu...
- Claro, namoraria, se isso fosse passar mais rapidamente a dor. – Depois voltou a morder o sanduíche – Mas nem sempre dá certo, posso lhe assegurar.
Amanda ficou pensativa. Rosana também. Não pelos mesmos motivos. Amanda pensava se conseguiria esquecer Gabriele com Paola, mas, ao mesmo tempo, temia se apaixonar de verdade e ai, sofrer de novo. Rosana, por outro lado, em segundos, lembrou-se de como havia tentado esquecer Amanda, depois que ela terminou tudo, se envolvendo com mil garotas. O truque não deu certo. Em vez de se afastar, ficou assistindo Amanda experimentar outras emoções e se decepcionar cada vez mais. Quanto a ela, tinha enxugado suas próprias lágrimas sozinha. Aos 18 anos, sentia-se velha demais para acreditar no amor. Impossível. Não depois do que tinha visto e vivido. Aos 26, parecia uma versão fake de si mesma, repleta de camadas, de defesas, de frustrações. Não acreditava no amor, mas depositava muita confiança na amizade.
O amor não é o líquido que passa pelo cano, mas o cano que conduz o líquido...ouviu isso em algum lugar. O que significaria, de fato?
Ao longo de mais de 10 anos, tinha mantido com Amanda uma amizade única, emocionante como uma montanha-russa, cheia de altos e baixos, mas inabalável. A dor ia e voltava, intensa. Quando finalmente pensava ter superado aquele amor, tinha recaídas. Passou anos assim. Acabou investindo em relacionamentos mais sérios, mas nunca conseguiu se afastar de Amanda para cicatrizar definitivamente sua ferida emocional. Foi o seu erro.
- Pois é, namorar outras pessoas ajuda, mas não significa que dê certo...- Concluiu, repetindo para si mesma, o seu próprio fracasso. A sua voz trouxe Amanda de volta de seus pensamentos.
- Ás vezes eu me pergunto por que me dou o trabalho de tentar ajudá-la se você não quer ser ajudada... – observou Rosana.
- Ah, não? Por que? – Ela voltou os olhos semi-cerrados para ela com o ar de desafio.
Rosana olhou para o sanduíche enquanto o mordia e falou de forma displicente.
- Muito simples, Amanda. Eu duvido que seu “amor” por Gabriele seja autêntico. É igual chuva de verão. Passa. E rápido. Esse seu tesão por Paola pode ser mais duradouro. Por que não aposta nele? – Pausa. Um risinho irônico. - Claro, você vai escolher a pior opção, como sempre.
Amanda fuzilou os olhos de Rosana. Ela com aquela mania de ter razão em tudo.
- Rosana, o que você não percebeu é que são os meus sentimentos, as minhas dúvidas e claro, o meu sofrimento.
- Ah, tá bom! – disse largando o resto do sanduíche no prato e esfregando o guardanapo na boca com violência. – Eu te conheço melhor do que você mesma, Amanda. Não vou dar uma de psicóloga com você, nem vou dizer o que eu penso de verdade sobre isso.
Amanda parou de comer também e ficou encarando-a.
- Pode falar, Rosana! O que quer que pense a meu respeito, posso suportar. Você já me disse mil grossuras e eu sempre suportei, não é?
- Não é grossura, não, é apenas o que eu penso.
- Você pode dar o nome que quiser. Mas fale, estou ouvindo.
- Não precisa se alterar, está bem?!
As duas pararam de falar repentinamente, surpresas com a agressividade que a conversa havia suscitado.
- Não era meu objetivo gritar com você. – disse finalmente, em voz baixa, Amanda.
- Nem eu.
- Então, pode dizer o que pensa.
Rosana suspirou. Olhou para ela. Poderia fugir da conversa, mas não o fez.
- Acho que essa coisa de amor perfeito, de cara-metade, uma fuga que você inventou para fugir dos problemas com sua família. Na verdade, sempre que você procura alguém que lhe preencha em todos os sentidos, está tentando recuperar o amor de seus pais.
- Que absurdo! – Disse jogando o guardanapo na mesa, indignada.
- Eu disse que você não aceitaria.
- Aceitar é uma coisa, concordar é outra. – Amanda irritou-se. – Ainda bem que você não é psicóloga e sim médica. Poupou a humanidade de ter mais pesadelos!
- Debocha, Amanda, mas no fundo você sabe que é isso. Essa busca não terá fim. Você nunca vai achar a sua cara-metade porque ela não existe. E se um dia passar por ela, vai pensar que não é, porque continuará buscando, imaginando que estará em outro lugar e não ali.
Amanda olhou para ela, no fundo dos olhos.
- Só porque não deu certo com a gente não significa que essa pessoa não exista.
Rosana prendeu o ar e a fuzilou com os olhos.
- Sacanagem, Amanda! Eu estava falando de outras coisas.
- Eu também. Mas essa sua mania de remexer a nossa história nas entrelinhas de todo conselho que me dá sobre a minha vida amorosa, também.
- Você tirou o dia para me irritar, tudo bem. – Disse, querendo se levantar – Mas para mim chega!
- Rosana, não se levante dessa mesa! – Ordenou. E mais amena, pediu: – Vamos conversar, ok?
Foi quando percebeu que as pessoas sentadas próximas à mesa estavam olhando para elas, comentando e sorrindo. Á contragosto, desistiu de sair e sentou-se, zangada.
- Puxa, que sacana arrogante! – Disse, com as palavras presas entre os dentes.
Amanda já estava arrependida do que disse e pediu desculpas.
- Isso não foi legal de sua parte, Amanda, não foi mesmo! O que quer que a gente tenha vivido, já passou, foi superado. Agora somos só amigas e é assim que deve ser. Nunca pensei o contrário. – falou em tom baixo, mas contundente.
- Eu exagerei. Te devo mil desculpas. Por favor...
Um ar pesado. Suspiro.
- Também não precisa ficar rastejando...está desculpada. – disse, sem olhar em sua direção.
Amanda olhou para ela, preocupada. Rosana estava magoada. Não podia suportar isso.
- Tudo bem. Não precisa ficar se vai ficar feito múmia.
Rosana a olhou séria.
- Você que provoca e depois não agüenta.
Amanda sorriu.
- Você fica uma graça zangada.
- Você também.
As duas sorriram. Amanda tocou na sua mão.
- Desculpe, Rosana. Você não merecia.
- Está bem...vamos esquecer.
Amanda apertou a mão de Rosana entre as suas e deixou rolar uma lágrima inesperada.
- Ah, meu Deus! Você é tão patética, Amanda! Por que está chorando agora?
“Mais vexames!”, pensou.
- É que você é tudo o que eu tenho, de verdade! Me desculpa! Sou tão idiota.
Rosana amoleceu. Sua voz ficou mansa e carinhosa. Consolou:
- Não precisa chorar. Vamos esquecer, virar a página. Eu já esqueci. – Sorriu – Pronto, passou. Pare de chorar. Vamos pra casa, ok? A gente conversa lá.
Amanda concordou. Enxugou as lágrimas e levantou-se, acompanhando Rosana até a saída. Sentia-se fragilizada. Tinha magoado Rosana. E ela, com o cenho vincado pela seriedade, considerava os custos de sua sina.








A Dança Vazia - Capítulo 9


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Capítulo 1: Rompimento e confronto
(por hanna-k , adicionado em 15 de Janeiro de 2005)


Dia normal na agência. Nem muito agitada, nem muito sem ter o que fazer. Amanda desprendeu os olhos de seu computador e deu uma rápida olhada em volta de si. Foi quando viu Eduardo, o redator cabeludo e sorridente, se aproximar.
- Então, você não vai para a premiação?
Ele se encostou na divisória próximo ao seu computador e ficou esperando a resposta. Amanda não estava a fim de alongar-se na conversa. Moveu o pescoço dolorido, estalou os dedos das mãos entrelaçadas e sorriu, displicente, para ele.
- Até que eu fui indicada, mas não sei se levo. Além disso, o pessoal da antiga agência vai estar lá e eu não gostaria de encontrar meu ex-chefe. – Disse, dando o assunto por encerrado.
No íntimo estava querendo evitar dar de frente não só com Marcos, mas também com Gabriele. Desde o encontro casual no barzinho, nunca mais tinham se visto. Ela havia viajado há semanas para fora do país e não tinha retornado ainda. Mas poderia voltar a tempo de acompanhar o namorado à festa.
- Bobagem você não ir, Amanda. Todo mundo vai! – Tentou convencê-la Eduardo, olhando-a muito fixamente.
- Você é do comitê da festa, é? – Brincou Amanda, estranhando a insistência.
- Olha, vai rolar bebida de graça à noite toda – Frisou, fazendo um sinal engraçado com as sobrancelhas, “hum-hum” - Você bebe algo além de coca-cola?
Ela sorriu. Eduardo não queria parar de falar. Informou que Túlio havia arranjado ingressos para todo mundo. Fazia questão de que todos fossem, para unir a equipe e torcer pelas categorias em que a agência concorria.
- A nossa agência está concorrendo, Amanda! Você não pode simplesmente dizer que não vai? E a torcida, como fica?
Uma das peças da agência de Túlio que tinha grandes chances de ganhar era com as lojas de Paola, como viera a saber há alguns meses. Isso significava que Paola também iria. Um motivo a mais para Amanda não ir, embora não fosse o mais forte. Com todo aquele clima quente que havia entre as duas, as pessoas iriam perceber. Sem dúvida. Mas, e Gabriele?
- A minha favorita é a campanha das lojas da Paola. Sen-sa-cio-nal.
- Bem, realmente ainda não sei... – Disse, tentando voltar a trabalhar.
Eduardo pareceu perceber a natureza de sua hesitação e comentou:
- Olha, sem maldade. Todo mundo na agência já sabe de seu lance com a Paola. Se o problema é esse...- Ele disse, olhando-a nos olhos, sem pestanejar - E se quer saber, você é a namorada mais maneira que ela já teve.
Amanda ficou muda.
- É tão óbvio assim? – perguntou, surpresa.
- Na verdade, óbvio não. Mas é que um site publicou umas fotos de vocês duas há alguns dias. Todos da agência viram.
Amanda ficou vermelha de vergonha.
- O Túlio?
- Ah, ele viu e caiu na gargalhada. Mas pediu respeito.
Amanda cobriu os olhos.
- Estou morrendo de vergonha.
Eduardo sorriu e tirou suas mãos dos olhos.
- Mas como você é bobinha, Amanda...- E sorrindo muito, comentou – Ninguém liga com quem você dorme...nem o Túlio, obviamente. Além disso, vocês duas juntas, heim, são de arrepiar!
Amanda estava sem palavras. Durante a festa tinha visto pessoas tirando fotos digitais, mas não percebeu que estava sendo flagrada.
- Não esquenta, não! Relaxa. A turma daqui é do bem, ok? Ninguém vai ficar tirando onda, pode ficar tranqüila.
Tinha que tirar a história a limpo. Acessou a Internet. Sim, lá estavam as fotos. Um seqüência incrível de fotos, com as cenas do encontro, beijo, dança colada, mais beijos, mais amassos...Sentiu que a sua cara estava incendiando. Preocupada, ligou para Paola. Ela sorriu muito da história e não ficou nem um pouco surpresa.
- Você só deveria ter me advertido que tinha repórteres lá.
- Por que? Tudo isso é publicidade gratuita... – Paola sorriu. Amanda não estava muito animada. Paola tentou consolar. - Olha, poderia ter avisado, mas você ficaria tensa, preocupada com isso...E eu não queria atrapalhar o nosso clima.
Podia imaginar a cara safada que ela fazendo. Mas estava séria demais para se divertir.
- Mas Paola, se assumir para estranhos é uma coisa, mas estar em evidência em um dos sites de festas mais acessados da cidade é outra completamente diferente...
Paola gargalhou.
- Você se acostuma. Posso lhe assegurar que não será a última vez que isso acontecerá.
Amanda não tinha respostas para isso. Na verdade, não sabia ao certo se um dia ia se acostumar com a superexposição de sua condição sexual. Mas agora era tarde. Tinha que suportar o desconforto e a sensação de que todos falavam às suas costas.
- Isso é paranóia da sua cabeça. – Dissuadiu Paola.
- Pode ser, mas vou levar um tempo para me recuperar.
Paola sorriu. E disse em tom ameno:
- Se a sua preocupação é com o seu emprego, já te disse, o Túlio não liga para isso. Ele é muito cabeça aberta, você sabe. Ele só fez uma observação careta sobre manter as aparências, deixar as coisas em seus devidos lugares. Ou seja, não misturar as relações profissionais e pessoais aqui na agência. Você precisava ouvir, Amanda: até parecia você falando. – Tentou fazer graça.
- Paola... – Censurou. Ela não parecia ver problema algum com o que tinha acontecido. Mas para Amanda, tudo era novo e assustador. Não bastasse o escândalo de Marcos na agência, agora aquilo.
Quando voltou a ouvir a conversa, Paola estava tocando no assunto da festa de entrega do prêmio e a chamou para irem juntas.
- Paola, nem sei se vou.
- Por que não?
Amanda nem poderia listar a relação de argumentos contra. Ficou em silêncio.
- Além disso, não sei se é uma boa idéia irmos juntas.
- Por que não? Agora todo mundo sabe que estamos namorando.
- Justamente por isso. – disse, desconfortável.
- Que seja. Você pode ir no seu carro e eu no meu, mas quando a encontrar, ficarei grudada em você.
Amanda inquietou-se. Paola estava disposta a deixá-la tensa ou era impressão sua?
- Brincadeira, Amanda. Fique com quem você quiser na festa...
O tom de voz de Paola mudou sutilmente, deixando escapar o tom decepcionado. De repente, arrependida com sua negativa, Amanda voltou atrás e disse:
- Tudo bem, Paola. Eu vou.
- Ótimo! Vamos juntas, então. Prometo que não vou levá-la de moto, para não deixá-la nervosa.
Amanda sorriu, dissolvendo a sua tensão. De certa forma, ficou mais aliviada com a situação. Túlio sabia sobre ela e não a incomodou com perguntas, nem sequer lançou um olhar questionando suas atitudes durante toda a semana. O pessoal da agência disfarçava bem ou realmente não se importava com aquele assunto. Cada um na sua, sem piadas, comentários, insinuações. Suspirou aliviada e voltou ao próprio trabalho, experimentando pela primeira vez, em muito tempo, uma gostosa sensação de adequação.
Quando o dia da premiação chegou, o segundo horário da agência foi liberado para que todos fossem se produzir. Amanda resolveu fazer uma mudança radical no visual. Seus longos cabelos anelados cor de mel receberam luzes. A maquiagem destacou seus olhos e ressaltou a sensualidade de sua boca carnuda. Para completar escolheu um belo vestido em tons claros, valorizando as suas pernas. Não costumava usar saltos com freqüência, mas naquele dia, o traje pedia. Estava irresistível. Paola, que chegou para apanhá-la em casa, lançou-lhe um olhar repleto de desejo. Amanda não permitiu que a beijasse. “A maquiagem”, explicou. Paola: “Mas isso não impede que eu toque você, não é?”. Amanda sorriu, deixando-se abraçar por ela. “Não”, disse sussurrando em seu ouvido.
A cerimônia de entrega dos prêmios ocorreu no Centro de Convenções da cidade. Foi um tanto longa e enfadonha, com exceção das pequenas gafes e micos que todos adoraram comentar depois. Amanda não levou o prêmio, mas não estava interessada nele. A agência assinava a peça. Não queria nenhum encontro com Marcos. Depois, todos se dirigiram ao salão de eventos, onde a festa ocorreria para convidados. Paola estava comportadíssima. Amanda estava a seu lado e Túlio do outro, circundados por dois publicitários da agência. O ambiente estava ameno e piadas jocosas sobre o mundo publicitário pipocavam. Era um daqueles momentos que todos adoravam. Amanda sentiu que estava sendo observada e acabou percebendo que era Marcos. Percebeu que ele estava ao lado de uma mulher loira, que o enlaçava. Seus olhos cruzaram-se. Ele ergueu o copo, saudando-a. Tensa, Amanda virou-se sem retornar o cumprimento. Marcos se desvencilhou de sua companhia e marchou em sua direção, sorrindo sarcástico.
- Túlio, eu não sabia que tinha contratado a minha ex-funcionária – disse, apontando-a.
Túlio olhou para ele, um tanto surpreso.
- Primeiro, boa noite, Marcos. Segundo, o nome dela é Amanda. Você deveria saber - disse, tentando ser ameno.
Marcos deu de ombros.
- Fiz questão de esquecer. Mas o que você não sabe é o que se faz hoje em dia para se conseguir um pouco de diversão. Não é, Amanda?.
Amanda estava paralisada, sem saber o que dizer. Sem querer, apertava o braço de Paola, buscando apoio. Paola estava tranqüila. Detestava bate-bocas e vexames em público. Mas se a situação ficasse séria, estava pronta para encarar. Marcos olhou Paola de cima a baixo e sarcástico, perguntou apontando para ela:
- E quem é essa? O novo caso de Amanda?
Silêncio no grupo.
- Marcos, acho que você já bebeu demais. Está sendo inconveniente. – disse Túlio a ele, pegando em seu braço, tentando levá-lo dali. Marcos livrou-se dele com um safanão. – Você não sabe o que ELA fez, Túlio. Roubou a minha namorada! Estragou tudo!
A sua voz alterou-se. Pessoas em torno olharam para eles. O circo estava armado. Agora, sim, teriam do que falar a semana inteira. Talvez, meses...
Amanda saiu dali, constrangida, correndo por entre as lágrimas. O grupo do deixa-disso impediu que ele a perseguisse. Marcos se afastou deles, brandindo palavras de baixo calão enquanto olhava Amanda sumir por uma das portas. Paola foi atrás dela com sua habitual tranqüilidade. A encontrou no jardim do lugar, afundando as mãos no rosto tentando parar o fluxo de lágrimas. Não conseguia. A maquiagem havia borrado e agora, lágrimas escreviam filetes de cor em seu rosto. Paola a abraçou. E limpou seu rosto com um lenço.
- Será que ele nunca vai parar de me perseguir? – Explodiu para ela.
- Calma, Amanda. Ele não vai lhe fazer mal algum. Ele é apenas um pateta musculoso...um brucutu pinguço!
- Mas todos ouviram ele me chamar de...
- Sim, mas as pessoas que conhecem você estavam lá para te defender – Apartou Paola, estancando as lágrimas que jorravam de seus olhos.
- Mas e o Túlio? Meu Deus, e o pessoal da agência?
- O que é que tem? – Paola olhou bem nos seus olhos – Você vai ter que enfrentar isso de cabeça erguida. Não precisa ter medo ou vergonha.
- Pra você é fácil falar. Já é assumida! – Quase gritou, entre soluços.
- É verdade, mas assumir só me deixou mais forte, Amanda. É preciso aprender a enfrentar os obstáculos, superá-los.
Amanda sentiu-se de repente sem forças e aninhou-se em seus braços protetores. Olhou para Paola e tentou explicar-se.
- Você sabe que não fiz o que ele disse...Eu não fiz...
- Eu acredito...- disse, beijando seus cabelos - Mas me ocorreu que a pessoa por quem você está apaixonada é a namorada dele. Ou melhor, a ex-namorada.
Amanda esboçou um sim, com a cabeça.
- Mas ela não me quis... – Disse, abraçando Paola mais forte.
Paola passou a mão em seu rosto com ternura.
- Por que foi uma boba... – Sorriu.
No dia seguinte, Amanda hesitou em ir trabalhar, mas seguiu os conselhos de Paola. Era preciso aprender a enfrentar. E foi o que fez. A equipe continuou trabalhando normalmente quando a viu entrar. Alguns vieram lhe prestar apoio. Suspirou aliviada. Estava em sua mesa quando foi chamada à sala de Túlio. Sabia que estava perdida. Ele a demitiria. Qualquer um faria isso em seu lugar. Tentou abrir a boca, para antecipar as explicações, mas ele a interrompeu.
- Amanda, talvez não seja o melhor momento para falarmos nisso, considerando as circunstâncias. Mas devo deixar as coisas bem claras entre nós. Eu já disse uma vez e repito: não me interessa a sua vida pessoal, contanto que não atrapalhe a profissional. – Disse, cruzando as mãos sobre a mesa. Amanda baixou a cabeça. – O que ocorreu ontem foi de um terrível mau gosto.
- Isso significa que estou demitida? – perguntou.
Túlio ficou levemente surpreso. Sorriu, simpático, desarmando-a.
- Não, de forma alguma. Dei a entender a você que a puniria? Bem, pelo contrário. Eu lhe chamei aqui para prestar o meu apoio, no que você precisar. Inclusive, posso liberar você hoje para que se refaça do choque.
Ela balançou a cabeça. Tinha que trabalhar e esquecer.
- Quanto ao Marcos Oliveira, eu não aprovei absolutamente o que ele fez. Foi perverso. Mas entendo. Para muitos homens, não é fácil perder.
- Mas, Túlio, o que ele falou não é verdade...- disse, ansiosa.
- Eu sei, Amanda. Você está com Paola e não com outra. – Sorriu, deixando-a à vontade – Aliás, Paola gosta de você. Sei também que não tanto quanto ela gostaria.
Amanda baixou os olhos.
- Mas isso só interessa a vocês duas. – Considerou. – E eu só estou tocando nesse assunto para que você perceba que, neste momento, não estou falando como seu chefe, mas como companheiro de equipe. Sei que muitas pessoas em minha posição tentariam resolver esse “problema” da forma mais fácil: se livrando da perturbação...Não que eu ache o que ocorreu horrível demais para se esquecer. – Disse, corrigindo os óculos sob o nariz - Estávamos entre gente da comunicação. Com certeza, vai se espalhar. Não foi um episódio convencional, do tipo que se espera em uma festa de gente adulta. Mas vamos ver de que maneira isso nos afetará daqui por diante. Se não houver fogo nessa fumaça, ótimo. Mas, particularmente, não penso nesse imbróglio como algo negativo. Pode ajudar a fornecer mais valores à minha equipe, valores como confiança, solidariedade e respeito. Não poderia aceitar que alguém de minha equipe agindo de outra maneira. E você se encaixa no perfil dessa agência, Amanda. Quero que permaneça e mostre seu valor.
Amanda olhou para ele e não conseguiu esconder sua surpresa. Agradeceu calorosamente e o abraçou. “Obrigada”, disse.
Paola sorriu ao saber.
- Túlio é muito gente fina, Amanda. Eu não poderia esperar atitude diferente.
Amanda sorriu também, ainda sob efeito de um certo enlevamento.
- Eu ainda estou surpresa, Paola. Ele foi tão gentil e humano. Nunca conheci ninguém como ele.
- Homens como ele são raros. – Concordou Paola, apertando Amanda em seus braços. – Mas como você, Amanda...nunca conheci ninguém.
Suas bocas se encontraram num longo beijo. Paola estava menos agitada, abandonando certos programas que antes faziam parte de sua rotina para ficar com ela. Amanda de repente percebeu isso. Será que Túlio tinha razão? Paola estava tentando tornar o relacionamento mais sério? De alguma forma percebeu que esse assunto a deixava desconfortável. Por mais atraída que estivesse por Paola, não havia conseguido esquecer Gabriele. Como poderia amar uma outra pessoa, se sua mente estava ocupada?
Tentaria pensar nisso depois. Olhou para ela.
- Você acha que um dia poderemos ser felizes?
Paola sorriu para ela.
- Mas que pergunta séria...Tem certeza que quer parar o que estamos fazendo para discutir a relação?
Amanda sorriu, correspondendo ao beijo ardente. “Não”...

..................................

Os dias se seguiram na agência. Amanda estava com trabalho acumulado, uma nova campanha, desta vez, o lançamento de um novo bar na cidade. O ruído do celular a tirou de sua concentração. Não ia atender, mas percebeu que era um número extenso e estranho. Gabriele. Suas mãos tremeram ao tocar o aparelho. Sua voz quase sumiu.
- Alô. – Disse, aturdida.
- Oi, Amanda. – Disse em um tom aliviado.- Espero não estar ligando em uma hora imprópria...Acho que perdi a conexão com os horários daí. Que horas são?
- Nove horas. – Respondeu, tentando se manter calma.
Ela podia ouvir o ruído da respiração profunda de Gabriele atravessar o aparelho. Sem poder evitar, estremeceu. Ondas atravessavam seu corpo e aqueciam suas fibras. De súbito percebeu que nem mesmo a distância foi capaz de fazê-la sentir melhor com a situação.
– Aqui já são mais de duas horas – Informou Gabriele – E faz muito frio. Estou tremendo...
Breve pausa. A respiração de Amanda estava fora de ritmo, entrecortada. Não conseguia controlar-se.
- Você está bem?
- Estou... – Conseguiu dizer. Sua voz estava presa à garganta. As mãos suavam.
Gabriele fez uma pequena pausa antes de prosseguir.
- Eu sinto muito...por tudo. – disse, finalmente, em tom de confidência. Amanda sentia a sinceridade dela e pressentia que se permitisse a conversa pousaria no passado.
- Gabriele, a gente não precisa falar sobre isso por telefone. – pediu tensa, sem conseguir parar de tremer.
- Eu sei. Acabei de mandar uma mensagem para você, Amanda. Não é o que eu queria lhe dizer...Esperava falar pessoalmente com você, antes de viajar, mas não consegui encontrá-la...Mas, está tudo bem. Eu só quero saber uma coisa: você ainda é minha amiga...?
Silêncio.
- Entendo...
Amanda quase poderia sentir a dor de Gabriele naquela simples palavra. Não é que não quisesse responder, mas não tinha forças para dizer o que queria. Confessar, talvez, como sentia a sua falta. Mas, o velho dilema alojava-se ali, no meio da conversa: não poderia ser amiga de Gabriele, se a desejava de outra forma.
- Não estou podendo falar direito, Gabi... Estou muito nervosa.
- Não fique. Ainda sou eu, a Gabriele que você conhece... – A sua voz se tornou suave - A gente supera isso, Amanda.
Amanda mordeu o lábio inferior e apertou as unhas na palma da mão. Tentava controlar o tremor do corpo e da voz.
Silêncio,
- Por favor, Amanda. Fale comigo...- pediu e sua voz ficou um pouco ansiosa - Eu preciso dizer tantas coisas a você...mas não assim, desse jeito.
- Gabi...eu não sei – conseguiu dizer, com a voz embargada.
- Não me diga que não pode, Amanda! – Interrompeu. – A gente não pode continuar assim. Você não pode continuar fugindo de mim.
A voz de Gabriele quase sumiu quando disse: “Você me machuca”
Amanda não sabia o que essas palavras significavam. Poderia parar e pensar nisso, mas ela já estava falando de novo, turvando a sua mente.
- Eu sei que não é certo ficar falando disso por telefone, mas eu não consigo esperar até voltar ao Brasil...me escute. – Pausa – Tem tanta coisa acontecendo, Amanda, coisas que queria dividir com você. Tudo teria sido mais fácil se a gente tivesse conversado, Amanda.
Silêncio.
- Você está me ouvindo?
Amanda estava chorando e não conseguia falar.
- Sim...
- Olha, não chora, Amanda. Eu quero voltar o mais breve possível, mas não sei quando ainda...- Disse, em tom angustiado. – Você me espera?
Amanda não conseguia responder.
- Eu posso ligar para você de vez em quando?
- Sim - murmurou. – Eu não posso mais falar com você agora.
Desligou. As lágrimas deslizavam em seu rosto. Foi ao banheiro esconder a emoção. Olhou-se no espelho. Não conseguia parar de chorar. Soluços a sacudiam intensamente. O que Gabriele queria dizer com tudo aquilo? Estava tão confusa. As suas frases iam e voltavam, invadindo a sua mente com um mantra. Não podia esperar se recompor melhor para ler o email que Gabriele havia mandado.
Respirou fundo. Abriu sua caixa de mensagens. Sim, havia um email lá. Sua mão tremeu ao clicar na mensagem. Afundou os olhos naquelas palavras.
“Olá”, começava por dizer. “Querida Amanda, é quase manhã. Eu não dormi. Passei a noite refletindo sobre determinados fatos. Não me pergunte agora sobre o quê, acho que não posso dizer isso assim, através desse meio tão frio. Também não me interprete mal: não desejo fazer disso um mistério. Prometo que esclareço tudo pessoalmente, quando voltar. Na verdade, resisti muito à idéia de lhe escrever. Gostaria de esclarecer o meu comportamento. As coisas aconteceram de maneira tão inesperada que, no primeiro momento, tomada pelo choque, fiquei paralisada. Não poderia crer no que você me dizia, embora, talvez no íntimo suspeitasse. Viver tal cena me deixou possuída por uma frieza que não pude controlar. Sei que deixei a situação pior. Eu peço desculpas por ter agido do jeito que agi, com aquela arrogância e autocontrole. Somente quando você se afastou, pude raciocinar direito. Hoje, percebo que poderia ter sido mais humana, menos formal e distante. Há muito tempo, desde que ocorreu aquele episódio, não me sinto bem. A inquietação deu lugar à tristeza. Sinto-me culpada. De alguma forma incentivei o que você sentiu por mim? Dei a entender alguma coisa? Bem, isso não importa mais. Pelo menos, não para mim. Hoje, apenas sei que sinto a sua falta. Falta de tudo que tínhamos juntas: de nossas conversas, de nossas risadas, de nossos pequenos programas. Acho que só percebi o espaço que você ocupou em minha vida quando você saiu dela. Não é fácil falar sobre isso, tentar ajustar a realidade à nossa conveniência. Nem pensei em pedir que me ouvisse à força. Não saberia, naquelas primeiras semanas, externar a minha própria confusão. E com isso, acho que atormentei sua amiga Rosana com meus questionamentos e a minha ansiedade. Agora ela deve me odiar de verdade e não a condeno. Mas, admito que, quando viajei, estava com a expectativa de que, longe de você, começasse a raciocinar direito e a analisar o que significaria sustentar o peso de sua ausência e também, das coisas que me revelou. Sei que tal percepção pode vir em hora errada, um pouco tarde, eu sei... Mas é necessário que eu esclareça isso porque, apesar de tudo, ainda desejo manter o meu elo com você e sua preciosa amizade. Se for possível. É o que mais desejo. Você disse-me que não queria me ver. Eu até tentei obedecer você. Fiquei repetindo para respeitar o seu desejo. Perdoe-me se não conseguir deixar você em paz. É errado ficar tão próxima de alguém que só quer esquecer e reconstruir à sua vida. Eu sei, é egoísmo de minha parte desejar que tudo retorne ao que era antes, como se nada tivesse acontecido. Não considerei a sua parte. Insisti demais em passar uma borracha por cima do episódio, sem considerar o que você sentia. Sei que machuquei você. O que você pediu foi mais que justo. Não pude ser honesta quanto a isso. Acho que ainda insisto por não aceitar sua decisão. E, de repente, aqui, longe de casa, na frieza desse quarto de hotel, me vejo completamente sozinha, pensando em como isso me afeta, em como estou desmotivada no trabalho, que antes era a coisa que mais me importava. Foi só ai que percebi que dei pesos diferentes a setores de minha vida. E não olhei como devia para mim mesma, em como agia. Faço a mea culpa sobre isso. Acho que agora não suporto a idéia de me encontrar com você e vê-la me rejeitar por estar refazendo a sua vida, por não ter mais espaço para mim. Eu não consigo parar de pensar nisso, em como fui ingênua, egoísta, sei lá...Você me perdoa, Amanda?”
Novas e abundantes lágrimas escorriam em seu rosto enquanto lia. O que Gabriele estava tentando dizer? Não conseguia discernir direito. Gabriele parecia estar tão angustiada, tão perdida e frágil. Não conseguia associar essa Gabriele à imagem que tinha guardado em sua mente. Tentava ler nas entrelinhas a mensagem que ela não foi capaz de dizer com todas as letras, mas não se atrevia sozinha a tirar as conclusões. Tinha que ver Rosana e lhe mostrar a mensagem. Quando ela leu, Amanda não pôde perceber na expressão de Rosana qualquer emoção. Na verdade, ela parecia abandonada em suas reflexões. Depois do que parecia uma eternidade, ela murmurou:
- É... - Foi mais um suspiro do que uma afirmação.
- Então, o que você acha? – perguntou ansiosa.
- Acho melhor esperar ela chegar e aí você pergunta diretamente para ela. – Disse, simplesmente, dobrando a mensagem em duas, e entregando para Amanda, que não estava acreditando no que ouvia.
- Rosana, você sempre tem o que dizer...
- Não dessa vez. – Disse, olhando-a.
- Mas você é minha amiga...
- Justamente por isso não vou me intrometer.
- Mas...
- Você respondeu a essa mensagem? – Quis saber, séria.
- Não consegui. – Fez uma cara de choro. Pequenas lágrimas rolaram em seu rosto. – Eu já chorei o dia todo...
Rosana deu um pequeno risinho e se desarmou. Abraçou Amanda com carinho.
- Eu queria apenas sumir, Rosana!
- Mas você sabe que não vai mais conseguir evitar Gabriele. – Disse-lhe - Quando ela voltar, vocês vão ter que conversar, esclarecer as coisas.
- Eu sei, estou tentando me preparar.
- Sabe o que me lembrei? Da história de Romeu e Julieta... – Amanda voltou os olhos para ela sem entender – Aquela tragédia toda só aconteceu por causa de um erro de interpretação, não foi? Isso é, não fosse a impulsividade, a falta de informação e a imaturidade, eles poderiam ter tido um final feliz.
- O que está tentando me dizer?
- Que nem sempre o que parece é...Por isso, amiga, eu não arrisco nenhum palpite.
..............................

Amanda passou a noite refletindo sobre a mensagem, que voltou a ler inúmeras vezes...Não queria acreditar no que estava pensando, no que as entrelinhas sugeriam. Gabriele não estava só falando de amizade, da saudade que amigos provocam quando se afastam. Havia dor naquelas palavras, havia incerteza e dúvida também. Gabriele estava confusa e a procurava para conversar, não mais sobre amizade, mas sobre sentimentos...Não podia ser isso. E relia de novo. Cada nova frase adquiria um novo significado, mas depois, balançando a cabeça, Amanda chegar a uma conclusão. “Sobre que sentimentos ela gostaria de conversar?”. As frases da mensagem se misturavam às da ligação, formando uma mixórdia excitante. “Você me espera?”. Aquela frase era capaz de deixá-la estremecida por uma sensação poderosa.
No dia seguinte, na primeira oportunidade, mostrou a mensagem a Paola. Estavam em sua casa. Inicialmente, ela não entendeu do que se tratava. Depois, à medida que foi lendo, seu cenho foi franzindo. No final, lançou um olhar questionador para Amanda.
- Então...o que isso significa? Que perdi você?
Amanda a olhou com tranqüilidade. Sentou-se ao seu lado.
- Eu não interpretei essa mensagem como uma declaração de amor, se é o que está pensando...- Disse. – Mas passei a noite acordada, pensando. Percebi que mesmo sendo honesta com você desde o princípio, acho que não estou agindo bem ficando com você estando apaixonada por outra pessoa.
Paola a olhou. Podia sentir a tensão de seu rosto espalhar-se pelo corpo.
- É difícil dizer isso a você. – Pegou a sua mão e levou ao próprio rosto – Enquanto estive com você, tentei esquecer Gabriele e não consegui. Eu tentei me apaixonar por você, mas...
- Como você pode dizer isso com tanta convicção, Amanda? – Interrompeu. – Quantos meses você ficou com ela? Seis meses?
- Quatro meses...- respondeu.
- Quatro meses e você fecha a questão de que é ela a mulher de sua vida? Você nem me deu a chance...
Paola tinha se agitado e já estava de pé, deixando-a sentada sozinha no sofá.
- Espere, não vamos nos alterar...- Pediu Amanda.
- Muito fácil para você, Amanda. Foi eu quem disse que não estava interessada em ter uma relação, mas acontece que mudei de idéia. – E tomando-a em seus braços, beijou-a com intensidade, deixando-a sem fôlego – Você pode dizer que isso não é nada? Pode negar que não sente algo por mim?
Paola a abraçou forte, como se não a quisesse deixar partir.
- Essa Gabriele é apenas uma viagem de sua cabeça, Amanda...ela nem sabe o que quer. Você vai continuar sofrendo, esperando que ela se decida por você. Talvez nunca aconteça.
Amanda se afastou de seus braços e a olhou nos olhos.
- Você tem razão, Paola...Ela pode não saber o que quer. Pode apenas me querer como amiga. Mas não estou rompendo com você por essa razão. É que comecei tudo isso para esquecer Gabriele, e não esqueci. Nós não queríamos nos envolver, era apenas por sexo, lembra? E agora percebo que foi um erro de minha parte. Não quero continuar usando o nosso envolvimento como uma muleta. Percebi que enquanto não enfrentar o que sinto por Gabriele não poderei ter uma relação plena com outra pessoa. – E abandonando os braços ao longo do corpo, murmurou: - Desculpe.
Paola não parecia acreditar no que ouvia.
- Amanda, pense bem!
Uma lágrima rolou, selvagem, pelo rosto de Paola, enquanto ela lhe olhava perplexa.
- Você está me deixando?
Ela baixou os olhos.
- Eu preciso, Paola. Eu amo Gabriele. Eu nunca enganei você...
- E eu? Como eu fico?
Amanda a abraçou forte e disse mansamente:
- Paola você merece alguém que ame você de verdade.
Ela se afastou de seu abraço, pungida. O olhar dolorido expressava mil palavras que não conseguiam sair de sua boca. Sentou-se no sofá, arrasada. As duas ficaram ali, uma ao lado da outra, sem nada dizer por um bom tempo. Amanda pegou a mão de Paola e a apertou. Gostaria tanto de dizer que, não fossem os sentimentos que tinha por Gabriele, seria a mulher mais feliz do mundo ao seu lado. Mas não poderia confessar isso. Seria como dar falsas esperanças.
- Eu vou sofrer, Amanda. – disse, Paola, finalmente, sem poder conter as lágrimas.
- Eu também, Paola. – Disse-lhe, também chorando. – Mas não quero mais continuar.
- E se não for o que você está esperando, se Gabriele lhe rejeitar de novo? – Paola a olhou – Por que não conversa com ela primeiro, antes de me dispensar...? A gente pode tentar de novo.
Amanda enxugou suas lágrimas.
- Não, Paola, eu tenho que enterrar o amor por Gabriele primeiro...
Paola ergueu-se e ficou em pé, olhando-a longamente. Amanda levantou-se e foi em sua direção.
- Eu só queria dizer que você foi uma das pessoas mais importantes que passaram em minha vida e não queria que sumisse...
Paola passou a mão no rosto, espalhando suas lágrimas.
- Não vou desaparecer, mas preciso de um tempo para me recuperar, ok? Eu também preciso enterrar uma coisa dentro de mim...- disse-lhe.
Amanda balançou a cabeça, concordando.
- Você vai manter contato? – perguntou.
- Sim... – disse Paola, abraçando-a rapidamente antes de sair, deixando-a sozinha na sala.
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A Dança Vazia - Capítulo 10


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Capítulo 1: Capítulo final
(por hanna-k , adicionado em 24 de Janeiro de 2005)


“Trazemos em nós uma tal necessidade de amor que, por vezes,
um encontro no momento certo – ou talvez no momento errado –
desencadeia o processo de fulminação e de fascinação.
Nesse momento, projetamos sobre outrem essa necessidade
de amor, a fixamos, a endurecemos, e ignoramos o outro
que se tornou a nossa imagem, o nosso totem. O ignoramos
crendo adorá-lo. Aí está, efetivamente, uma das tragédias
do amor: a incompreensão de si mesmo e do outro”
Edgar Morin, in “Amor, Poesia, Sabedoria”.

............................


A duas horas do encontro com Gabriele, Amanda pensava consigo mesma que a vida não a havia preparado para enfrentar tal situação. Estava nervosa. A boca seca não se saciava com a água. Tomou alguns goles de uma bebida forte. Mas não havia nada que aliviasse a sua tensão. Não foi Robert Johnson quem disse que “algumas mulheres são atingidas pelo amor como se ele fosse um dragão devorador”? Sim, mas não era o amor que a consumia, mas uma paixão arrebatadora e intransigente, que não nunca admitiu recusas a seu apelo inflamado. E a paixão que sentia por Gabriele tinha todos esses ingredientes. Não havia se passado um dia em que não desejasse estar com ela. Nenhum dia sem que acordasse com ela em seu pensamento ou que fechasse os olhos e não a encontrasse lá no canto mais iluminado de sua mente. Suas palavras povoavam a sua memória, assim como o tom de sua voz, o som de seu sorriso, cada nuance do movimento de seu corpo. Estava tudo lá, intocável. Sentia-se aprisionada nessa teia irresistível, povoada de sensações. E agora, faltando apenas duas horas, não sabia o que dizer para Gabriele. E o que Gabriele tinha a lhe dizer.
Mil questões passaram por sua cabeça durante as últimas duas semanas. Havia perdido a noção do tempo. As horas se arrastavam intermináveis. E naquele momento, gostaria de sumir, perder a identidade, passar por cima desse capítulo e acordar no final da história, como a Bela Adormecida, apenas com um beijo.
Estava enlouquecendo de tensão. Por que tinha aceitado aquele encontro, naquele dia? “Não estou preparada para isso, não estou preparada”, repetia.
Gabriele havia ligado pontualmente todos os dias, desde o email. O horário que ela escolheu intencionalmente para ligar era tranqüilo, logo depois de Amanda encerrar o seu horário na agência. Parecia adivinhar que ela estaria em casa, olhando fixamente o telefone, esperando que tocasse. E era com o coração acelerado que pegava no fone para ouvir a sua voz. Amanda imaginava que, com a diferença de fusos, deveria ser tarde da noite em Toronto. Mas Gabriele não parecia se importar com esse fato. Pelo contrário, demonstrava estar feliz e animada. Queria saber se Amanda estava bem e evitava tocar nos pontos mais delicados. No final de cada conversa, deixava escapar um “estou com saudade”, “estou contando os minutos para voltar ao Brasil”.
Aos poucos, lentamente, foi se abandonando naquelas longas conversas. Poderia até esquecer, por alguns minutos, que um dia tivessem deixado de se falar e que entre elas ainda houvesse, impávido, aquele muro de silêncio sobre “aquela questão”. Quase sempre, porém, era a sensação de enlevamento que prevalecia...o prazer delicado de ouvir a voz de Gabriele, contagiada pela excitação. Em diversas ocasiões, flagrou-se sorrindo das histórias que ela contava, sobre os passeios, as pessoas que conheceu, sobre o trabalho árduo. Nessas ocasiões, tinha que reprimir uma ponta de ciúme por não estar ali também, compartilhando.
Durante a última semana, Gabriele parecia render-se a uma tristeza inesperada. E foi em tom de confissão que disse: “Hoje, olhando para trás, tudo o que vivi me parece sem sentido. Não sei onde foi parar aquela menina que um dia brandiu palavras de ordem contra o sistema, que gritou com os pais e que passou por cima dos próprios princípios apenas para se dar conta que certas coisas não mudam nunca”. Amanda não poderia deixar de se sentir impotente ouvindo-a falar assim. Por que ela estava, de repente, tão amarga e demonstrando tanto arrependimento? Gabriele sempre sabia dar uma justificava lógica à sua dor. E naquele dia, disse que era violenta a sensação de que, durante todos aqueles anos, tinha criado uma outra pessoa para viver em seu lugar. E Amanda, intimamente aterrorizada com tais revelações, percebia que nunca soube lidar com crises existenciais, nem mesmo as suas. Não tinha palavras certas para confortar Gabriele. E ela, percebendo sua impotência, a dissuadia de tentar. “Não tente me ajudar, Amanda...Acho que já tenho idade suficiente para tentar me resolver sozinha”. E o seu tom ficava meio doce, meio rouco. Poderia até pressentir que ela lançava um olhar perdido para a paisagem vislumbrada através da janela do hotel. “Não se preocupe com o que digo...Ás vezes, essa melancolia me acomete. E, nesses últimos dias, sem perceber, fiquei meio que compelida a verificar as minhas gavetas fechadas, jogar fora as coisas inúteis que acumulei nos meus escaninhos, tirar toda essa poeira que se depositou dentro de mim”. As palavras perdiam-se em um silêncio desconfortável. Amanda, entre pensativa e preocupada, não sabia ao certo o que Gabriele queria dizer nas entrelinhas. Quase sempre ela lançava mão dessas metáforas e construía edifícios de palavras elaboradas, auto-referentes, de significado complexo. Nunca tinha visto problema nisso, até aquele momento, quando desejava encontrar o nexo de tudo e entender o que ela estava sentindo, o motivo de tanta amargura. Quando então, Gabriele silenciou, talvez olhando para dentro de si, Amanda presumiu que ela fazia um monólogo secreto. Quis então desligar, esboçando uma despedida. Mas, Gabriele não a deixou ir. “Não, Amanda, fale comigo. Quero ouvir a sua voz...Conte-me: como você está em seu novo trabalho?”, e a encheu de perguntas. Ficou ouvindo-a silenciosa, talvez, encrespada por seus fantasmas interiores. E, de repente, ficou surpresa por ouvir, ao fundo, Norah Jones entoar “Come away with me”. “É, eu a trouxe comigo”, disse. “Também tenho aqui, comigo, vinho, queijos e lembranças”. Amanda estremeceu a ouvi-la falar assim com a voz tão triste. Queria consolá-la. Mas pelo que ela sofria?
No dia seguinte, porém, tudo voltou ao normal e ela já parecia estar animada de novo. “Bem tenho que admitir que esse frio todo me afeta o humor”, disse, brincando. Amanda também sorriu. Claro que era brincadeira de Gabriele, que já tinha morado fora do país e que, definitivamente, sofreu muito na tentativa de se readaptar ao clima tropical e às altas temperaturas quando voltou à sua cidade natal. O motivo do bom-humor? Voltaria ao Brasil em dois dias. Passaria por São Paulo e ficaria umas poucas horas lá, revendo amigos, e, só depois, no sábado, estaria voltando para casa, em um outro vôo. Estava agitada com a notícia e falava rápido, como temesse não ter ar suficiente para contar sobre seus planos. Não, não queria que Amanda a aguardasse no aeroporto. Queria vê-la depois de deixar as coisas no apartamento e tomar um banho, para tirar a “poeira” da viagem. “Eu vou ver você, em sua casa, posso?”, ela perguntou. Amanda não hesitou em dizer sim, mas por dentro, suas fibras estremeceram violentamente.
E agora que o dia tinha chegado, não sabia quais palavras dizer, o que poderia simplesmente falar ou se a sua voz a obedeceria.
Os minutos atravessavam impassíveis o simulacro de realidade que é o relógio, dando conta que o momento de encontrá-la aproximava-se. Então, começava a sentir os efeitos de sua ansiedade. Não conseguia ficar sentada ou em pé...corria a sala de cinco metros quadrados de um lado para outro. Torcia as mãos, sem perceber. A cabeça girava com mil questões sem resposta. Começava a sentir uma dor no estômago e a sede não parava de atormentá-la. De súbito, em pé, sentiu que era melhor sentar-se, porque o mundo poderia rodar com ela mais rapidamente do que poderia suportar.
- Rosana, estou tendo uma crise de ansiedade. Não estou conseguindo respirar direito – Disse a ela, pelo telefone, arfando.
Entre uma risada e outra, Rosana aconselhou:
- Respira funda e pausadamente, amiga! Agüenta firme. Senão, o plantão médico está aqui, ok? Mas fica tranqüila, vai dar tudo certo.
- Vai dar tudo certo? – repetiu, como se necessitasse dessa frase para se sentir melhor.
- Vai dar tudo certo. – Confirmou.
Suspiro.
- Tá bom. Eu te ligo depois.
Tentou normalizar a ansiedade e respirar melhor. E pouco depois, ouviu o celular tocar. Era ela. Nervosamente:
- Oi!
- Oi! – disse Gabriele, contendo um impulso de euforia. – Estou aqui, do lado de fora. Posso entrar?
Suspiro, nervosismo.
- Vou abrir a porta.
Não sentia as próprias pernas que executavam movimentos involuntários. Poderia agarrar-se a porta e pedir que ela fosse embora, porque não agüentaria passar por aquilo. Mas ela estava do outro lado, esperando. Com as mãos trêmulas, abriu a porta. O peito arfando uma ansiedade que não poderia esconder. O rosto lívido, o tremor que sacudia o seu corpo inteiro. A garganta estava seca demais e qualquer ruído que atravessasse por ela, seria como a pele arranhando uma superfície áspera.
Gabriele estava parada do lado de fora da porta, sorrindo-lhe, exalando seu perfume, exibindo seu habitual charme. Ela estava mais pálida, abatida, com uma leve mancha escura em volta dos olhos, devido a inúmeras noites de insônia, mas ainda assim, mais linda do que nunca. Seus olhos brilhavam e sua boca exibia um sorriso largo e afetuoso. Estava vestida simplesmente, com camiseta e jeans. Quase nunca a via assim, tão despojada. Ficou abobada olhando para ela, paralisada. Os encantos de Gabriele, que tantas vezes havia admirado disfarçadamente, estavam ali, palpitando em sua frente, afogueando seu rosto.
- Posso entrar? – Perguntou ela, sorrindo de novo, depois de aguardar que a convidasse, que desse espaço com seu corpo para que atravessasse a porta.
Amanda balançou a cabeça e saiu da frente.
A voz metera-se em algum lugar dentro dela e teria que sair, incansável, em sua captura. Não conseguia abrir a boca. “Por que era assim?”, repreendia-se.
Gabriele, parecendo bem-humorada, comentou sobre seu cabelo.
- Ficou bonito. – Disse-lhe, lançando um olhar repleto de significados. Amanda fugiu de seus olhos.
Os cabelos dela também estavam diferentes. As pontas desciam ao nível dos ombros e delineavam um novo contorno.
- Estou deixando crescer – justificou automaticamente, ao notar que ela também observava o seu. Sorriu.
Ela tinha entrado sem beijar-lhe os dois lados do rosto, como antes, sem abraçá-la, como de costume, nos velhos tempos da amizade. Estava parada em pé, olhando-a. E talvez estivessem assim, paradas, observando-se por muito tempo, sem que percebessem. O tempo, como que sem substância, atravessava fluído, no redemoinho de seus olhares.
Gabriele trazia na mão um pequeno pacote. Estendeu para ela, sorrindo.
- Não queria lhe trazer nenhuma bugiganga eletrônica, Amanda, mas não resisti.
Amanda, sem graça, pegou o pacote de suas mãos e sentando-se no sofá, abriu o embrulho delicadamente.
Gabriele tentava controlar o sorriso. Sentou-se também.
- Eu achei que era sua cara. Percebi que você ainda não tinha uma máquina digital...e como trabalha também como webdesigner, achei que era perfeito para você.
Amanda emocionou-se.
- Ah, eu nem sei o que dizer, Gabi, obrigada.
Ficou surpresa com o olhar repleto de ternura que Gabriele lhe lançava naquele momento.
- Eu também lhe comprei um ursinho panda muito lindo...mas fiquei constrangida de lhe encher de presentes, assim, de cara. – Fez uma pausa hesitante, como se escolhesse as palavras certas – Quando você for ao meu apartamento, eu te mostro as outras coisas...
- Outras?
Gabriele sorriu e inesperadamente pareceu estar envergonhada.
- É que tive tempo para fazer compras também... - E em torno de seus lábios, duas covinhas apareceram, como nos velhos tempos.
- Ah.
A velha tensão surgiu por entre as pernas de Amanda e ela poderia desmaiar com tais sensações. Sua face estava em brasa. Tentava disfarçar a sua cara de desejo, baixou os olhos, apertou as pernas com suas mãos. Gabriele não demonstrava pressa em começar a falar. Parecia testar a resistência de Amanda com aquela conversa amena. Pensou que ela começaria ali a falar de sua viagem, mas não.
Silenciou. E agora a olhava, com aquele olhar sereno. Parecia dizer que não poderia mais suportar aqueles silêncios, omissões, frases abortadas e que agora ansiava ouvi-la. Mas Amanda, embora se esforçasse para afastar o inoportuno mutismo e ser cordial, sentia enrijecer todos os músculos. Seus olhos não tinham direção certa. Respirava pesadamente, tensa.
Foi quando Gabriele, com a voz macia, disse:
- Eu sei que essa conversa é difícil para você, Amanda. Também não está sendo fácil para mim. – Num movimento, procurou sua mão e a apertou suavemente.
O toque de Gabriele a fez estremecer mais ainda. Uma sensação de prazer a invadia. Poderia atingir ao orgasmo com aquele simples toque tanto era o tesão represado em todos aqueles meses, a saudade que embrenhou-se dentro de si, sem nunca desaparecer.
Dominada por tais sensações, evitava olhar para ela. Procurava perder os olhos em um ponto da parede em frente, nas próprias pernas, no teto. Mas ouvindo-a chamar seu nome, foi atraída para aquele velho olhar arrebatador. E sentia-se desmanchar toda naqueles olhos verdes, intensos, faiscantes. Como estaria seu rosto, agora, desarmado, com o seu peito arfando e o corpo estremecendo involuntariamente numa onda de desejo e medo?
Gabriele, querendo tranqüilizá-la, tinha tomado a sua mão por entre as suas e massageava delicadamente os seus dedos. Mas o efeito era devastador. Amanda, num leve movimento, quis tirar a sua mão das dela, mas Gabriele, olhando-a nos olhos, pediu, docemente:
- Deixe...por favor.
Aquele tom de voz a amoleceu. Os seus olhos pareciam convidá-la para colar seu corpo ao dela. Mas tinha que resistir. Tinha que se controlar. Continuava tremendo involuntariamente.
O ar morno, o perfume de Gabriele na sala, o suor frio de suas mãos.
- Eu tenho tanto o que dizer, Amanda...- Disse Gabriele, cortando o silêncio tenso – Nem sei por onde começar...
Mas, engolfada na gravidade do que queria revelar, tentava controlar a emoção e o próprio nervosismo. Nesse momento, Amanda pôde vislumbrar uma Gabriele diferente da que conheceu, tão segura e decidida. Surpreendeu-se ao vê-la, com uma certa hesitação, escolhendo que palavras dizer, o leve tremor na fala.
- Ás vezes, quase sempre, me sinto meio que perdida. Não estou melhor agora por ter me tornado tão fria e insensível. Nada disso me concedeu alívio. Na verdade, invejo seu sofrimento, tão repleto de vitalidade, de sensações, de expectativas. A minha dor mais lancinante é justamente perceber que, em minha vida, sempre fugi do sofrimento. E, talvez, nunca de fato tenha sofrido. Não por amor. Sempre encarei com desdém a minha relação com os homens. Eu os subestimava, achava-os patéticos, descartáveis, superficiais. Nunca consegui encontrar alguém que balançasse as minhas estruturas de forma avassaladora, que me fizesse repensar a vida.
Gabriele voltou seus olhos em direção a ela. Parecia que ia desabar a qualquer momento.
- Mas depois que aconteceu aquilo com a gente, passei por momentos de intensa reflexão. Não sei, foi difícil entender. Algumas coisas que sempre fizeram sentido, me deixaram aturdida. Não consegui encaixar as coisas direito na minha cabeça. Essa falta de respostas me provocou um curto-circuito. Hoje entendo, acho que sim, estava sofrendo uma transformação interior. Por muito tempo me perguntei por que foi você que operou essa crise em mim. Descobri que foi porque não usei as travas emocionais que costumava erguer em meus relacionamentos. Não usei e nem pensei em usar...
Amanda lançou-lhe um olhar inquieto e repleto de perguntas. Não ousaria interrompê-la com suas perguntas.
- Eu gostava daquilo tudo, daquele pequeno teatro de uma vida perfeita que era a nossa amizade. Estava me beneficiando com o seu encantamento e, de certa forma, alimentei o que ocorreu, não foi? Acho que fui mesquinha e covarde. Eu tive medo, um medo profundo de que a minha vida não tivesse mais sentido, se eu mexesse as peças erradas.
- Eu não entendo, Gabriele...- Interrompeu, Amanda, olhando em seus olhos – Eu não sei muito bem o que está querendo me dizer...
Gabriele suspirou e disse-lhe:
- Eu não sei se consigo falar sobre isso claramente, Amanda. Eu gostaria ... Mas as coisas ainda estão tão confusas em minha mente. Queria extirpar a minha angústia indefinida, as coisas que tenho experimentado contra a minha vontade. – Seus olhos agora estavam em um tom mais escuro, sombrios. - Tenho tanto o que lhe falar e mesmo assim não consigo dar uma seqüência lógica e coerente a tudo isso...
Amanda a olhou. Gabriele estava tão séria e ao mesmo tempo, triste. E então se surpreendeu por se deparar, novamente, com aquela mulher inesperadamente frágil que um dia, naquela tarde em seu apartamento, falou sobre dor, morte e rejeição.
A sua voz tinha adquirido um tom íntimo, confessional.
- Pouco depois do que aconteceu conosco, eu terminei com o Marcos. Ele não assimilou as coisas muito bem. Passou a me perseguir. Disse-me coisas terríveis, que não vou repetir para você. Falou com minha mãe. Disse-lhe que eu o tinha trocado por uma mulher. Ela foi me procurar, pedindo explicações. Foi uma conversa difícil, mas não diferente das que tive com ela a minha vida toda. Ela ainda consegue me desorganizar emocionalmente, pude perceber. Então, eu não desmenti o que ela pensava a meu respeito.
Amanda não pôde evitar a surpresa.
- Você não desmentiu? – perguntou, de repente preocupada com a avalanche de repercussões que isso traria para a vida de Gabriele.
- Não. - Ela lhe lançou um olhar inexplicável e sério. Sua voz estava calma.- Ela não tem o direito de se intrometer em minha vida, de controlar tudo a meu respeito, seja lá o que visto ou penso, e, muito menos, tem o direito de determinar quem devo gostar.
Gabriele apertou os olhos e falou sem tom de queixa:
- Ela me disse que aquele era o maior absurdo que poderia fazer em minha vida, nada comparado às coisas que tinha feito no passado e que envergonharam meu pai. Ah, ela julgou que tudo aquilo que fiz foi insignificante diante do pior dos pecados, a mudança nos meus papéis sexuais. Não pude deixar de rir...Ela foi patética. Disse-lhe coisas duras também. Acho que verdades que guardei comigo. Não me senti muito bem depois. Pedi desculpas por ter regurgitado mágoas antigas durante a nossa conversa. Mas não a desmenti. Eu sei que com isso a magoei, mas ela precisava saber que não pode mais me controlar. E que não deixarei que ela se intrometa em minha vida.
Amanda suspirou, sentindo-se subitamente mal.
- Eu sinto muito ter atrapalhado a sua vida, Gabriele. Nada disso teria acontecido se eu não...
Gabriele balançou a cabeça numa negativa.
- Não, Amanda, nunca diga isso. Você foi a coisa mais importante que aconteceu em minha vida nos últimos anos e eu sou muito grata a você, por tudo.
Ela sorriu com uma ternura que Amanda jamais tinha visto. Seus olhos faiscavam intensamente. Pareciam querer incendiá-la.
Gabriele manteve um olhar demorado em sua direção e disse tranqüila, como se contasse um segredo:
- Queria que soubesse, Amanda, que não fiquei insensível à sua confissão. Apenas não sabia o que lhe dizer. Durante todo esse tempo, quis entender como você se sentia...Comprei livros, acessei sites, vi filmes, visitei lugares...E eu entendi, Amanda, o que você sentia. Mas nada do que fiz me trouxe tranqüilidade, nem respondeu às minhas próprias perguntas. Porque o que eu sentia não fazia sentido algum...Queria....- Gabriele hesitou. Parou o que estava dizendo subitamente. Baixou os olhos. Parecia censurar-se. - Não, não é justo com você, Amanda. Eu sei que você está tentando reconstruir a sua vida...Eu vi suas fotos com aquela garota...
- Como? – espantou-se Amanda, totalmente imobilizada.
- O Marcos...ele fez questão de mandar essas fotos para mim. Para me punir.
Amanda estava surpresa e muda. E Gabriele continuou a falar em seu tom abafado.
- Eu...me sinto tão egoísta, Amanda... – Ela falou quase meio a um soluço. Seus olhos inflamaram-se e lágrimas rolavam, quando ela virou o rosto em outra direção, tentando aplacar o seu súbito descontrole. – Eu não queria que você se apaixonasse por outra pessoa.
Amanda estremeceu e quis tomá-la nos braços, e depositar em seus lábios um beijo, arrancar dela aquela angústia. Tudo parecia tão claro agora. E Amanda, feliz, vibrando numa emoção que poucas vezes havia sentido em sua vida, sentiu que a névoa em torno de si estava se dissipando, e a sensação de irrealidade, que a controlava, tinha deixado-a livre para mover-se em direção à Gabriele, engolfada por teimosas lágrimas que rolavam em seu rosto. Seus braços a envolveram delicadamente e pôde encostar o rosto em suas costas, ouvindo os soluços que a estremeciam.
- Não precisa chorar, Gabi... – Sussurrou suavemente, apertando seus braços em torno dela.
Queria tanto poder dizer, naquele momento, que nunca tinha deixado de amá-la, que sua vida se transformou num imenso vazio quando se afastou dela.
- Oh, meu amor...perdemos tanto tempo. – disse-lhe, beijando-lhe o rosto, enxugando suas lágrimas pungidas.
O corpo de Gabriele colado ao seu, quente e trêmulo, era um oásis. Não queria se desgrudar dali de onde poderia sentir o aroma de seus cabelos, recém lavados, o perfume exalado por seu pescoço, a suavidade de sua pele. E agora sabia. Gabriele não ofereceria resistência. Queria tanto, ali, beijar seus lábios com intensidade, mas não sabia se ela desejava o mesmo.
Amanda então viu Gabriele lançar sobre ela seus olhos em brasa, repletos de desejo e dúvida. Amanda sentiu queimar-se por labaredas inclementes. O ar parecia ter congelado. E nem mais sentiam o próprio corpo, como que entorpecidas, saltando no solo da lua. Corações acelerados, respirações ofegantes, mãos perdidas. E finalmente, os lábios, atraídos por um intenso magnetismo, se entregaram completamente num beijo delicado, sensual. Tudo parecia vibrar intensamente. A nona de Beethoven. E, de súbito, Amanda pensou estar novamente sonhando. Mas sentia a boca de Gabriele na sua, as suas mãos em volta de seu corpo. E, sem que percebessem, haviam rolado do sofá para o tapete, e deitadas no chão, depois do que pareciam ser horas, o beijo tinha se transformado em um mergulho em águas profundas. Podiam sentir seus corpos estremecerem ritmados. A pulsação do desejo, que embrenhara-se rapidamente em cada pedaço do corpo, despertava uma infinidade de sensações desconhecidas. Mãos, boca, sexo, tudo ardia e pulsava, despertando uma dor envolvida em prazer intenso, clamando por alívio. “Eu quero. Você quer?”, sussurrou Gabriele, arfando um desejo intenso. “Sim!”, respondeu Amanda. Gabriele, disse-lhe, então, entre gemidos, que não tinha a menor noção do que fazer a seguir. Amanda calou sua boca com um beijo delicioso. Gabriele sentiu as mãos dela insinuando-se por dentro de sua blusa, arranhando gentil, mas firmemente a pele de suas costas, abrindo o sutiã. Estremeceu em um delírio inexplicável. Ainda grudada ao seu corpo, sentiu que estava sendo puxada para o quarto. Caíram assim, na cama, sem se desligarem do beijo, abraçadas, entregues a uma urgência que não tinha limites. Pernas, braços, bocas. A saliva doce, o desejo misturado ao perfume. Amanda começou retirar lentamente do corpo de Gabriele todos os pequenos obstáculos. Primeiro a blusa. Beijou aqueles seios com tal fervor, que poderia, naquele momento, fazer uma prece silenciosa. E depois, enlevada, beijou cada centímetro daquela barriga recoberta por imperceptível penugem. Em semelhante ardor, percorreu as curvas de sua cintura. E com delicadeza, arrancou a calça de suas pernas e por um momento, só por um momento, parou para olhar aquele corpo que tinha se feito seu. Quis parar o tempo para imortalizar essa visão. Mas Gabriele a puxou de encontro a si, arrebatada. Não queria fechar os olhos e apreciar o olhar de desejo de Amanda, sentir simplesmente a boca dela tocar cada parte de seu corpo. Mas... “Ah!”, gemeu. Amanda estava sobre ela, arrancando a calcinha já encharcada, beijando a sua boca, tirando a sua própria roupa, roçando sensual o seu corpo sobre ela. Não reconhecia suas reações àquelas carícias. Nem parecia estar dentro de si, mas em êxtase, numa viagem lisérgica. Seus olhos se transbordaram e lágrimas escorriam. Amanda abraçou-a forte, beijou seus olhos, enxugando suas lágrimas com a língua. Delicadamente, sem pressa. O amor e a sua melodia universal. Pareciam estar fazendo sexo pela primeira vez, trêmulas, extasiadas, seguindo uma coreografia perfeita. Amanda, naquele encantamento, submetia-se àquela doce volúpia. Sentia o corpo de Gabriele agitar-se ao toque de suas mãos, executando uma espécie de sincronismo sensual.
De súbito, não suportando mais apenas ser tocada, Gabriele girou o corpo, tentando assumir o controle, saciar seu desejo guardado, beijar o corpo de Amanda, passar a língua em toda aquela extensão de pele, braços, pernas...sentir o seu sabor. “Eu te desejei, Amanda!”, sussurrou roucamente, enquanto beijava a sua boca. “Eu me toquei tantas vezes, imaginando que você estava em mim”. Amanda não poderia suportar tão afirmação. Experimentou um gozo fulminante. “Ah, eu te amo tanto, Gabriele!”, disse ofegante. Então, tocando-a, deixou-a também transtornada, próxima ao clímax. Percebeu, então, emocionada, os músculos internos dela convulsionarem-se, em um prazer inexplicável. E abraçando-a com firmeza, esperou que sua respiração se normalizasse. E então, Gabriele a olhou com um incontido desejo misturado àquela ternura que desconhecia. Sussurrou em seu ouvido, enquanto descia a língua por seu corpo: “Não quero parar agora”...Não, não iriam parar.

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O amor não cabe dentro das palavras, nem o desejo precisa da letra morta para se manifestar...Abraçadas, dormiam uma nos braços da outra. A madrugada tinha passado rapidamente, arrastando consigo todas as dúvidas e as perguntas não respondidas. E quando a sucessão de beijos, línguas, abraços tinha perdido a sua urgência, o sono as arrebatou rumo a uma manhã tranqüila.
Gabriele nem parecia ter passado tantas noites insone nem por uma longa viagem de volta. Havia adquirido o hábito de dormir somente cinco horas por noite e, assim, abriu os olhos mais cedo. Sentiu uma leve pressão em seu ombro e viu que Amanda estava com sua cabeça apoiada nela. Aconchegou-se, depositando nela um beijo delicado nos lábios. Ela abriu os olhos e sorriu. Um novo beijo. Fechou os olhos repetidas vezes, enevoada. Estava com sono.
- Me abraça – pediu, com a voz dengosa. Gabriele obedeceu.
Mais tarde, estavam tomando café. Ao sentir aquele olhar de Gabriele sobre ela, repleto de promessas e desejo, foi atravessada por um intenso arrepio e ficou subitamente tímida. Não, ainda não estava ainda acostumada com aquela situação ainda. Baixou os olhos. E sorriu, radiante. Queria dizer coisas absurdas, fazer planos, dizer como se sentia, mas sabia que isso teria que aguardar. Tinha que controlar sua ansiedade. Para Gabriele, aquilo era muito novo. Podia apenas ser uma experiência, uma possibilidade. O que iria mudar em suas vidas? Amanda estava imersa nessas reflexões quando a ouviu falar suavemente:
- Estou ainda meio fora da realidade...- disse para ela, rompendo o silêncio, com a fala mansa - Acordei no meio da madrugada, imaginando se tinha sido um sonho bom. Mas vi você ao meu lado. Pensei que ia despertá-la com meus beijos. Descobri que você tem um sono pesado...mas você me abraçou forte, ainda dormindo. Quase chorei...nunca senti essa espécie de sensação por passar a noite com alguém. Foi tão diferente, mágico. – E de repente, baixando os olhos, colocou na sua voz uma leve censura: - Me desculpe. Eu me sinto meio boba com todas essas reações adolescentes.
Amanda sorriu e, num impulso, aproximou seu rosto do dela e deu-lhe um beijo demorado em sua boca. Roçou seu nariz no dela, brincando.
- Eu amo você, sabia?
Gabriele sorriu. Estava feliz. Tinha tanto o que dizer, falar sobre o que passou, como sentiu-se um dia inexplicavelmente arrebatada ao pensar naquele beijo desajeitado; em como ficou mexida, revolvendo cenas perdidas em sua memória. Queria tanto dizer, em poucas palavras, como se descobriu aos poucos apaixonada; como ficou confusa sem entender o que acontecia com seus sentidos, que repentinamente gritavam enlouquecidos por ela, por um toque seu. E como, finalmente, depois de tudo, nada mais fazia sentido algum. Só a sua paixão desmedida.
- Eu falo demais, não é? – Perguntou Gabriele, de repente preocupada.
- Não, meu amor, você nunca fala demais. Eu adoro ouvi-la. E quero que fale tudo o que sente. Eu também tenho muito o que dizer. Coisas que guardei dentro de mim. – E sorriu, com uma certa malícia, beijando sua boca levemente - Mas, hoje, quero apenas matar a minha saudade.

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Um piano sincopado e uma leve percussão nunca tinham adquirido tanto significado quanto ali, naquele quarto. Ouviam, silenciosas, a voz rouca e imponente de Nina Simone entoando a melancólica “I got it bad and that ain´t good”, de Ellington. E parecia que era tudo o que precisariam ouvir.
Quanto tempo tinham ficado abraçadas? Essa coisa de tempo é muito engraçada mesmo. As luzes do dia já estavam desaparecendo, engolfadas, e elas nem sequer tinham percebido. Um pacto silencioso, selado com mil beijos, determinava que elas deveriam continuar assim, apaixonadas. Gabriele a observava. Estava quieta, engolfada em seus pensamentos. Depois, aproximando seu rosto do dela, disse:
- Você está um pouco diferente do que eu me lembro, Amanda.
Amanda não sabia definir se aquele olhar era de preocupação ou apenas se ela estava concentrada no que ela responderia. Resolveu não endossar aquele rumo de conversa.
- Gabriele, você já parou para pensar que, a partir de agora, teremos que nos conhecer de novo? – sorriu de forma singela - Quando você me conheceu, eu fiquei um pouco doente de amor. Eu sempre ficava nervosa com você por perto – e ainda fico...Não tinha a palavra certa. Perdi a conta das coisas que deixei de dizer. Parte de minha vida, você não sabe. O meu passado não importa, mas ele fez de mim o que sou. E ainda tem você, que de certa forma sempre me intimidou. Somos tão diferentes! E cada vez mais, percebo que nunca estaremos...ah...no mesmo nível?
Gabriele lançou sobre ela um olhar surpreso, mas terno. Passou as mãos sobre seus cabelos.
- Eu me apaixonei por você daquele jeito, tímida, meio calada, sumindo cada vez que eu te olhava...Mas confesso que nunca pensei que você pudesse ser, na intimidade, tão sensual e doce. A maneira como você me olha, me toca, o seu beijo...Você me deixa um pouco desconcertada...não, arrebatada. Sim, eu acho que tem razão. Eu preciso conhecê-la de novo...Eu quero saber de tudo a seu respeito. Mas não vou enchê-la de perguntas desnecessárias. Teremos tempo para isso, não é...?
- Sim.
- Quanto à outra questão, não acho que sejamos tão diferentes assim. Temos muitas afinidades, alguns princípios comuns...Mas se você se refere às nossas diferenças sociais, nunca achei esse fato significante. E não quero nunca que se sinta intimidada comigo por causa disso. Quero que nosso relacionamento seja assim, verdadeiro, sem dissimulações.
- Relacionamento? – repetiu.
Gabriele respondeu rapidamente:
- Não é o que estamos vivendo?...- hesitou por um instante – não é o que você quer?
Amanda subiu sobre ela e cobriu seu rosto com sua vasta cabeleira de fios anelados.
- Eu não esperava que você falasse sobre isso tão cedo...mas, sim, é o que mais quero. – disse, afastando seu cabelo do rosto de Gabriele e colando seus lábios nos dela. Um beijo deliciosamente longo. Mas algo estava errado. Ela continuava com aquela certa expressão de que tinha algo a dizer. Algo que a incomodava.
Amanda não sabia o que era, mas pressentia que o assunto estava rondando. Imaginou se, no fundo, ela estaria passando por algum conflito devido a situação de estar se envolvendo com alguém do mesmo sexo. Gabriele não ficou surpresa de que ela pudesse imaginar isso. Mas...
- Não, Amanda, absolutamente, não tenho problemas em relação a isso. De minha parte, não há conflito algum. Acho até que teria um pequeno conflito a resolver, se não tivesse tido enfrentado minha mãe naquele dia. – E apoiando-se de lado, virou-se para ela, olhando-a nos olhos. – Sabe, desde ontem, no primeiro beijo, senti que a angústia que sentia nos últimos meses sumiu; nenhuma dor restou dentro de mim. Estou me sentindo muito bem, leve, feliz. – Sorriu. Aquele aspecto de tristeza pareceu despontar naquele sorriso - No entanto... tenho que aprender a lidar com as sensações estranhas que me assaltam...como o meu inesperado ciúme de você. Por favor, não me entenda mal. Não quero ficar revolvendo o seu passado, os seus antigos relacionamentos, muito menos ficar lhe questionando sobre como foi, de quem você gostou...isso é repugnante, eu admito...mas – a olhou triste – Mas é que eu quase morri vendo você beijar aquela garota. Nunca fiquei tão destroçada por dentro...acho que não estava preparada para isso. O seu rosto. Você parecia transtornada de desejo. Quando me lembro disso, eu fico...triste. Queria que o seu desejo fosse meu, sempre.
Ela fechou os olhos por um instante e deitou-se olhando para o teto.
- Isso é esquisito, Amanda. Me desculpe. Não tenho esse direito.
Amanda tocou em seu rosto, fazendo uma carícia.
- Gabi, não é que eu tenha me esquecido de você enquanto estava com a Paola. Ela foi muito importante para mim naquele momento. Com ela pude superar um pouco a sua ausência, você entende? Eu não tinha esperança de que pudéssemos ficar juntas. Tinha que me livrar da dor que me consumia. Mas percebi que não era certo o que eu fazia, que poderíamos sair machucadas e, então, terminamos. – Ela olhou em seus olhos, passando a mão em seu rosto - Não sinta ciúmes dela, meu amor. Ela é minha amiga e vai continuar sendo. Não posso virar simplesmente as costas para ela, afastá-la de minha vida, como se não a conhecesse. Não seria certo.
Gabriele ficou com os olhos perpassados de tensão.
- Eu sei, Amanda. Não estou pedindo que deixe de falar com ela. É de mim que estou falando, de meus sentimentos. Não estou me sentindo muito racional ultimamente. Desculpe-me. Essas sensações que sinto são muito novas para mim. Não me lembro de ter ficado visceralmente ligada a alguém como estou com você. Fico pensando em como será, como terei que lidar com isso enquanto estiver trabalhando. É quase obsessivo. Penso em você o tempo todo. Sinto a sua falta, até mesmo quando estou com você. É meio absurdo isso. Eu tenho vontade de chorar só por vê-la dormir em meus braços. Não consigo ficar olhando você sem ser tomada por um desejo incontrolável. Quero ficar tocando você o tempo inteiro, beijando a sua boca....Você acha isso esquisito? – Olhou-a profundamente, preocupada.
Amanda sorriu e a olhou com ternura, passando a mão levemente em seu rosto.
- Eu acho que isso que você está sentindo chama-se paixão.
Gabriele olhou Amanda, confusa e fez um gesto como se discordasse.
- Mas eu já estive apaixonada, Amanda. É diferente.
- Talvez você não tenha se apaixonado da maneira certa...- Ela sorriu. – Bobinha.
E sorrindo de modo terno, disse-lhe:
- Gabriele, meu amor...A minha vida inteira estive procurando por você. E agora que a encontrei, não vou deixar que sofra. Vou fazê-la feliz. Não se preocupe...Vai dar tudo certo.

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Semanas depois, Amanda marcou um almoço com Rosana. Ela estava sorrindo e zombado da sua cara radiante e aérea de Amanda.
- Até que enfim você deu uma trégua a Gabriele...pensei que não ia deixar mais aquele ninho de amor e voltar ao mundo dos vivos. Até pálida você ficou, amiga.
Amanda sorriu.
- Na verdade, é que nos grudamos. Não foi só eu. E se quer saber, Gabriele está tão envolvida quanto eu. Jamais pensei que estaria tão ligada a uma pessoa. E, meu Deus, que mulher é aquela, Rosana? Fico me beliscando para saber se estou acordada mesmo. E nem tenho adjetivos para defini-la. Ela é sofisticada, carinhosa, intensa, inteligente, linda...gostosa!
- Tá, não precisa dizer tudo isso. Aliás, só me dá os detalhes: como foi? – piscou maliciosa.
Amanda parou de gargalhar e agora seus olhos se perdiam num mar de lembranças. Sorriu levemente.
- Não, ela não gostaria que contasse. – Disse, com os olhos brilhando – Mas foi melhor do que eu esperava, Rosana. Nem imaginei o quanto ela me queria. Eu nunca esperei que ela se entregasse sem reservas. Nunca estive tão...feliz!
Rosana a abraçou e disse:
- E eu fico muito feliz por você...bem, depois de tudo o que disse a ela, terei que pedir desculpas, se quiser tê-la como amiga e participar de suas vidas.
- Não se preocupe...ela não guarda mágoas de você. Acha que você agiu corretamente. Ela é que não estava preparada para enfrentar a si mesma. As suas palavras a sacudiram.
- Bem, sendo assim...quando der, na sua agenda, sairemos juntas para acertar as coisas.
Amanda sorriu...
- Mas não sei quando iremos nos aquietar para voltar a uma vida social. É tudo tão novo e excitante. Quase não estou conseguindo trabalhar direito. E ela também. Nos vemos todos os dias. E quase não conseguimos dormir. Ficamos conversando, nos tocando, beijando, até de madrugada. E o que é incrível, Rosana, é que essa mulher maravilhosa me enche de carinho, diz que sou linda, que tem ciúmes de mim, e que não quer me perder. Imagina... Eu é que sinto tudo isso em relação a ela. Se ela soubesse o quanto sofri pensando nela e no Marcos juntos...pôxa. Acho que é uma situação diferente de tudo o que já passei.
Rosana balançou a cabeça, concordando. Amanda fez um breve silêncio e comunicou:
- Gabriele me convidou para morar com ela.
Rosana parou de beber e a olhou, surpresa.
- Em matéria de precipitação, acho que vocês duas estão empatadas.
- Bem, eu disse que ainda era cedo, mas ela insiste. Não vê razão para protelarmos. Estamos dormindo todos os dias juntas. Sofremos quando não podemos nos ver. E nos finais de semana, ficamos grudadas o tempo inteiro.
- É o que acontece em início de relacionamento, não é?
- Claro...
- E essa cara de preocupação?
- Eu estou feliz, super apaixonada, mas acho que devemos esperar um pouco até as coisas de acomodarem e termos certeza do que queremos. Acho que nesse aspecto tenho mais experiência do que ela. Já fui casada duas vezes...
- Hahaha. Bem, você sabe o que dizem sobre um segundo encontro entre mulheres...- brincou – E Gabriele é nova nessa parada. Bem, mas não vou ser aquela chata que sempre tem argumentos do contra. Poderia dizer que ainda é cedo, que vocês mal se conhecem, que pode ser apenas o fogo da paixão – e assim como ele é intenso, apaga-se com facilidade – mas também posso dizer que você é adulta, independente e esperou por esse momento durante vários meses e é hora de curtir.
- É uma resposta. Mas eu ainda não decidi. Vou deixar as coisas seguirem seu curso um pouco mais...A Gabriele passou por uma crise profunda. Ficou muito abalada. E acho que ainda está meio zonza. Quero que ela fique bem, que confie plenamente nos meus sentimentos, que a gente se acerte. Não quero ir morar com ela até estar certa disso.
Rosana sorriu para ela.
- Ok, um pouco de maturidade vai lhe cair bem, Amanda.

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EPÍLOGO

Um ano depois.
Sorrisos, conversas, ruídos de taças e copos. A festa estava acontecendo no apartamento de Gabriele. Os convidados estavam ainda chegando, a maioria, mulheres. No home theather, o último DVD de Ana Carolina. Um entusiasmado grupo de mulheres acompanhava o show, cantando alto, com taças erguida, sob o efeito de uma leve embriagues. Eram cerca de trinta pessoas apinhadas na sala, ocupando a varanda e a cozinha. Amanda deixou os braços de Gabriele e sorriu em direção à Rosana, uma das que cantavam.
- Você continua muito desafinada, amiga.
- Cantar nunca foi o meu forte. – Brincou.
- É verdade...- sorriu.
- Estou achando incrível Gabriele ter aberto seu apartamento para este tipo de festa...Ela é sempre tão reservada. E (hahaha) nem imagino o que ela está pensando dessa turma que toma vinho com gelo...
- Ela não é tão doutrinária assim, Rosana, pega leve...É que ela trabalha demais, pensa demais e não relaxa muito. Fica com essa expressão meio séria. – deu uma risadinha – Aprendi a fazer umas massagens ótimas para relaxá-la quando ela chega exausta em casa. Ela tem uma carga horária maior do que a minha.
- Ah, tá bom...mima a garota.
- O meu amor merece...E a idéia da festa foi dela. Eu queria comemorar nosso primeiro ano com um jantar a duas, mas ela disse que todo mês a gente já comemora assim...Ela me convenceu. Gabi acha que eu não posso me desligar das minhas amizades. Já ela reduziu muito seu círculo pessoal depois de toda aquela confusão. Alguns se afastaram totalmente. Ela diz que não sofreu muito e eu acredito. Acho que ela se concentra muito no trabalho e dá pouca importância a relações fora do trabalho.
Rosana fez uma cara de “entendo perfeitamente”.
- E a família dela já aceitou você?
- A mãe dela, desde que vim morar aqui, parou de aparecer...Gabi queria deixar de ir a esses eventos familiares, mas insisti para que ela não rompesse, afinal, ela só tem a mãe e o irmão. A minha família continua daquele jeito, me colocando para escanteio, como sempre, mas já não ligo mais. Seria mais fácil se as coisas não fossem assim, mas não podemos querer uma vida 100% perfeita.
- Pelo menos, você tem um casamento perfeito...
- É tive um ano maravilhoso. Eu nunca pensei que pudesse ser tão feliz. – Falou, querendo se emocionar.
- Ei, mas não vai começar a ficar piegas de novo – disse, abraçando-a.
Amanda enxugou a pequena lágrima que rolou. E sorriu, correspondendo ao abraço.
- Agora, bonitona, me explica quem é aquela moça que veio com você, toda serelepe. Engano meu ou está rolando algo entre você e ela? Como é mesmo o nome dela?
- A Thais? Ah, é uma ficante. – Sorriu, maliciosa.
Amanda passou a mão pelo seu ombro e encostou a sua cabeça na dela.
- Quando é que vai deixar de galinhar e se casar, Rosana?
Ela gargalhou.
- Você nasceu para casar, Amanda. Ter filhos...Eu, não. Estou bem assim. Quanto mais, melhor. Sem compromisso, sem dores de cabeça. Quando eu me cansar, ai, bem...vamos ver.
- Ok. Não vou discutir com você... err. A Paola vem daqui a pouco e eu não sei como será com a Gabriele. Ela ficou um pouco incucada com ela, desde aquelas fotos...a gente já se cruzou com ela algumas vezes. Tudo muito cordial, mas nunca ficamos juntas num mesmo ambiente. Não sei como será...
- Bom, será o momento de saber como vão reagir os elementos químicos...
Amanda sorriu preocupada.
- É, não queria que ficasse nenhum clima estranho.
- Agora já era. Ela chegou...e quem a está recebendo é Gabriele.
Amanda olhou em direção a porta. Paola estava adentrando com uma loira estonteante. Sentiu um leve impacto. Ela estava linda. Agora, tinha pintado os cabelos cor de cobre, cobrindo os fios negros. Tinha vestido uma roupa que valorizava seu corpo atlético e sensual, como sempre. Sorriu para ela e andou em sua direção. Abraçou-a com carinho e cumprimentou a moça que a acompanhava.
- Mariana – Informou a moça.
- Entrem... – convidou, abraçando Gabriele. Olhou de soslaio para ela e não conseguiu notar nada de estranho em seu rosto. Suspirou aliviada. Sussurrou em seu ouvido: - Tudo bem?
Gabriele sorriu.
- Tudo, por que não estaria?
Amanda beijou seu rosto.
- Você sabe que eu te amo, não é?
- Sei...nunca duvidei disso.
A festa continuava noite adentro. Thais tinha se embriagado e agora Rosana cuidava dela. A música tinha migrado da MPB para a dance. Daniele e Vitória se esbaldavam, sendo acompanhadas por outras que aderiram ao ritmo. Estranhamente, Paola não estava ali, naquela pista improvisada. Conversava em uma roda formada por garotas, enlaçada pela loira. De repente, saiu dali e foi em direção a Amanda, que estava recostada em Gabriele em um dos sofás. Diante de sua trajetória tão provocante e decidida, Amanda ficou tensa. Não sabia o que ela queria.
- Oi. Você permite que eu dance com Amanda? – Pediu à Gabriele.
Ela permaneceu um instante em silêncio e então respondeu:
- Na verdade, acho que não se trata de dançar...Mas, é a ela que você deve pedir, Paola – Disse, olhando-a nos seu olhos. – Entretanto, antes disso, acho que nos devemos uma conversa adulta. Vamos para um lugar reservado?
Paola ficou parada, olhando-a e consentiu. Elas se dirigiram a um canto da sala e se sentaram. Amanda ficou olhando para elas, preocupada. Rosana veio sentar-se ao seu lado.
- O que está acontecendo, Amanda?
- Eu não sei...A Paola veio aqui, me chamou para dançar. Eu sei, foi pura provocação. A Gabriele pediu que conversassem. E agora estão ali um tempão. – Disse, sem tirar os olhos das duas. De longe, não notava, porém, nenhuma alteração de voz ou gestos agressivos. Porém, a expressão das duas era bastante séria. Ninguém parecia notar a situação tensa e a festa continuava agitada e barulhenta.
- Eu pensei que a história de vocês estivesse resolvida. – Comentou Rosana.
- E está. Não nada entre eu e Paola. Já nos encontramos algumas vezes durante esse último ano e paramos para conversar. Nunca rolou clima de minha parte, pelo menos. Gosto muito dela. Continuamos amigas. Não entendi por que ela fez isso.
- Bem, a conversa parece ter terminado.
Paola passou por ela e sem parar, mas sussurrou um “sinto muito” com um movimento de lábios. Gabriele veio sentar-se junto a ela. Beijou sua boca e a olhou nos olhos.
- O que foi, meu amor? – perguntou Amanda, olhando-a preocupada.
- Não foi nada, fique tranqüila. Eu achei apenas que era hora de acabarmos com esse clima que existia entre eu e Paola. Não quero ficar sentindo tensão cada vez que a gente se encontra. Achei até que nossa conversa foi interessante...
- É?...em que sentido?
- Bem, poderia jurar que ela ainda ama você.
- Ah...eu não sabia que podia ler pensamentos. – Brincou Amanda, afagando seus cabelos que agora estavam longos. Beijou seu pescoço e sentiu o seu perfume.
Gabriele sorriu.
- Você tem um ótimo senso de humor, Amanda. Bem, não precisei ler os pensamentos dela, só ficar observando ela olhar para você a noite inteira. Mas...conversamos. E acho que isso resolve parte das coisas. Não foi Lincoln quem disse que “destruo o inimigo quando o torno amigo?”
- Humm, como minha mulher é diplomática. – Disse, beijando-a. – Estou muito feliz que tenha tentado resolver conversando.
- Bem, me senti como nas invasões bárbaras, disputando uma fêmea com o adversário. Muito esquisito. – Deu um sorrisinho. – E Paola é como eu, uma mulher muito direta. Fala o que pensa. Disse o que queria e eu também. Não senti animosidade da parte dela. Ficamos esclarecidas.
- E você não vai me dizer o que conversaram?
- Não há muito o que dizer, Amanda. Apenas que ela sabe que já perdeu essa dança que pediu a você há muito tempo.
Amanda passou os braços em torno do pescoço de Gabriele e roçou sua boca na dela, antes de colar seus lábios em um beijo apaixonado.
- Sim, meu amor, essa dança sempre foi sua.

FIM

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